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  Última Sessão Averroes do ano motiva reflexão sobre os novos caminhos que a morte pode trazer
Texto: Giulia Afiune | Foto: Akira Tsukamoto
  29/11/2012

A última Sessão Averroes de Cinema e Reflexão do ano exibiu Os Descendentes (2011), de Alexander Payne, na segunda-feira, 26 de novembro, na Cinemateca Brasileira. A obra, vencedora do Globo de Ouro de melhor filme conta a história de Matt King (interpretado pelo também vencedor do Globo de Ouro, George Clooney), um advogado que se vê obrigado a aproximar-se das filhas de 10 e 17 anos quando a esposa, Elizabeth, sofre um grave acidente de barco.

No entanto, Elizabeth deixara um testamento vital (ou diretivas antecipadas) orientando a família e os médicos de que ela não gostaria de ter sua vida prolongada se estivesse à beira da morte.  “As diretivas antecipadas permitem que a pessoa já deixe escrito que chegado o dado momento, a deixem morrer em paz” explicou Márcio Fabri, Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e membro da Câmara Técnica de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.

Fabri compôs a Mesa de Reflexão ao lado de José Eduardo de Siqueira, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e membro do Conselho de Administração da Associação Internacional de Bioética. A mediação ficou por conta de Maria Goretti Maciel, diretora do Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público, membro da Câma Técnica sobre a terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do Conselho Federal de Medicina e ex-presidente da Academica Nacional de Cuidados Paliativos.

Segundo José Siqueira, as diretivas antecipadas são mais aceitas nos EUA, onde o filme se passa. No Brasil, elas não são proibidas, mas a
Resolução do Conselho Federal de Medicina no 1.995/2012  que dispõe sobre o assunto, ainda gera polêmica e precisa de esclarecimentos.

“Como o pai de Elizabeth fala, ‘ela teve o bom senso de escrever isso’. O ser humano tem esse direito, mas a aceitação é difícil porque não é da nossa cultura falar sobre a morte.” Siqueira lembrou a cena em que a melhor amiga de Elizabeth passa maquiagem na paciente em coma. “O filme insiste em mostrar o rosto de Elizabeth. De uma maneira geral, não queremos olhá-la, queremos esquecer a cara da morte. Vê-la parada no leito com uma gaze na garganta faz parecer que aquilo é o fim”.

Vida que engloba a morte
 
No entanto, para Fabri, as diretivas antecipadas são um pretexto para falar da vida que engloba a morte. “Em alemão, há duas palavras para ‘corpo’. Uma delas, körper, exprime a parte física, outra, leben, é como a vida se materializa no seu conjunto naquele corpo”,  explicou. A falência orgânica do corpo não significaria a morte da pessoa, que mesmo sem estar presente mantém lembranças, relações com outras pessoas. “O mundo afetivo, o nosso ambiente, fazem parte da nossa vida. Tudo se entrelaça”.

Para ele, essa relação é traçada no filme por meio do outro dilema que Matt vive enquanto sua esposa está no hospital: a possibilidade de vender um terreno de terra virgem havaiana que ele herdou de seus ancestrais, nativos da terra. A situação de Elizabeth faz Matt pensar sobre o seu direito sobre aquele território. “Ele passa por uma grande crise: ‘Isso aqui não é vendável, isso é vida. Não só a minha, mas de um conjunto de pessoas. Como posso me apropriar disso e fazer disso uma coisa?’”, reflete Fabri.

Para os debatedores, a obra é também uma crítica velada à lógica do sistema capitalista e à morte do meio ambiente. Fabri argumentou que os jovens da trama representam a pós-modernidade por estarem preocupados com coisas materiais e “happy-hours”. Por outro lado, Siqueira lembrou a cena em que a família observava o terreno a ser vendido e a filha de 10 anos, Scottie, questiona a venda da terra pois também gostaria de acampar lá como seus parentes. “Ela diz 'E eu?' Estamos destruindo o planeta e esse legado fica para nossos filhos e netos”.

Nenhum homem é uma ilha

O personagem de George Clooney usa a metáfora do arquipélago para caracterizar sua família. Segundo ele, pai, mãe e as duas meninas fazem parte de um todo, mas são solitários e estão lentamente se afastando. Para Siqueira, esse é o retrato da família moderna. “Cada um tem seu quarto, seu computador, sua televisão. As pessoas vivem na mesma casa, mas só coabitam, não se relacionam”

Contudo, a família de Matt King precisa se unir para enfrentar a situação da mãe, ainda que o pai e a filha mais velha tivessem profundos conflitos com Elizabeth. “Ele faz uma trajetória do ódio ao perdão, ao amor”, reconhece Siqueira, que também percebeu a passagem de Matt, ao longo do filme, pelas cinco fases de aceitação da morte: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação.

Para Fabri, essas mudanças fazem parte da vida. “A vida não aparece pronta – o fim do filme representa a reinvenção de caminhos. Nossa dificuldade de lidar com morte é também nossa dificuldade de compreender e construir vida”, pondera.

Ensino da Medicina

De acordo com Siqueira, as escolas de Medicina precisam estimular o estudante a entender a vida do paciente como algo além de sua saúde física.  “O fascínio pelas tecnologias tomou conta do médico e dos pacientes. Estamos formando especialistas em doenças, que não entendem o que é o ser humano - um ser biológico, psicológico e social. Se não olharmos para isso, só veremos doença.”

Para ele, a formação do médico passa também por uma formação de cidadão. Siqueira lembrou a atual onde de violência que atinge a cidade de São Paulo. “O diretor de Os Descendentes nos cutuca e diz: acorda. Não podemos achar natural a morte de 10 pessoas por dia”, disse ele, justificando-se com um trecho de um poema do inglês John Donne “a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano”.

 

Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

 John Donne

   


Sessão Averroes de Cinema e Reflexão

Atividade permanente da Cinemateca desde 2009, a Sessão Averroes de Cinema e Reflexão tem o objetivo de refletir, examinar e debater a condição humana, a vida e sua terminalidade sob uma perspectiva multidisciplinar. O projeto foi batizado em alusão ao filósofo espanhol Averroes, considerado um dos pais da medicina.

As sessões são gratuitas e, apesar de destinadas a profissionais e estudantes da área da saúde, também são abertas ao público em geral. Acontecem sempre às 19h da última segunda-feira de cada mês, são precedidas de visita monitorada (17h) por toda a Cinemateca, incluindo a área técnica de restauro, e de um lanche comunitário. Logo após o filme, convidados das mais diversas áreas do conhecimento formam uma Mesa de Reflexão, para debater a obra.

A Sessão Averroes é fruto da parceria entre Cinemateca, Hospital Premier/Grupo MAIS e OBORÉ e, neste mês, conta com o apoio da Faculdade de Medicina de Itajubá, Instituto Paliar e Academia Nacional de Cuidados Paliativos.

Retrospectiva: Sessões Averroes 2012

Outubro:
Cortina de Fumaça, de Wayne Wang

Setembro:
V Ciclo de Cinema e Reflexão Aprender a Viver Aprender a Morrer

Julho: A última grande lição, de Mick Jackson

Junho:
O Piano, de Jane Campion

Maio:
Você não conhece o Jack, de Barry Levinson

Abril:
Copacabana, de Carla Camurati

Março:
Mamãe faz 100 anos, de Carlos Saura

Fevereiro:
Biutiful, de Alejandro Iñarritu

 

 
 
 
   
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