RÁDIO COMUNITÁRIA PODE SER UM VEÍCULO DE INFORMAÇÃO DE MASSA?
Intervenção de Sergio Serafini*
Em geral, sabemos quais são as orientações dos veículos de informação de massa (jornais, televisões, rádios) e como os mesmos excluem e deturpam sistematicamente as temáticas referentes à possibilidade de mudanças em favor de centenas de milhões de seres humanos .
O controle dos meios de informação por parte das classes dominantes, a nível planetário, é cada vez mais insistente : concentração de propriedades monopolistas; agências de informação que, em muitos casos, adquirem uma conduta manipuladora; contínuos pedidos feitos aos jornalistas a fim de dar suporte ao "esforço bélico" da "comunidade internacional" nesta guerra sem fim.
Também nesta agressão contra o Iraque, a mídia, definida como independente, veicula propaganda direcionada a camuflar os verdadeiros objetivos geopolíticos da guerra, adaptando o quadro do conflito às previsões da Casa Branca.
Mas temos que destacar a conduta diferente adquirida pela televisão Al Jazira que, nesta fase, obrigou as outras televisões do mundo a mostrar imagens do conflito que desmentem a tese da ´´caminhada´´sem vitimas, finalizada com a punição dos mais maldosos e o sucessivo estabelecimento da democracia entre a multidão que aplaude os libertadores.
Há pelo menos 35 anos, de qualquer maneira, movimentos democráticos extrapartidários, grupos de base, coletividade, comunidades, fundaram revistas, jornais, emissoras de rádio e televisão para oporem-se às omissões e às manipulações da realidade que o ``sistema da mídia´´ propala para obter o consenso da massa sobre o estado atual das coisas.
Os esforços feitos em tal sentido produziram e produzem, mesmo agora, resultados extraordinários a nível de qualidade da informação e da contra-informação, mas ainda são uma decepção em termos de crescimento, desenvolvimento e difusão em massa de tais meios.
Neste quadro, parece que as razões da paz e da oposição à globalização capitalista, do ponto de vista da comunicação, possam somente ser abrigadas em meios de "contra-informação" - mídia com tiragem e difusão baixa, mas com a finalidade de interagir com movimentos, que, de fato, possam atingir a comunicação de massa .
Na realidade, muitos veículos de comunicação independentes, tais como os semanais ou mensais, rádios comunitárias via éter ou on-line, redes de comunicação na Internet funcionam mais com a lógica do "organizador coletivo" que destina-se a um público de militantes e não a um público de massa.
As razões desta situação se devem tanto aos elevados investimentos iniciais quanto aos custos arcados para gerenciar mídia de tipo genérica (para a televisão é suficiente pensar nos preços dos filmes, seriados, direitos de imagem para eventos esportivos) e ao fato que os faturamentos com publicidade dificilmente poderiam vir das multinacionais.
Mas, há exceções : em algumas realidades metropolitanas ao redor do planeta, tais como Santiago no Chile , Dakar no Senegal, Milão na Itália, existem umas emissoras radiofônicas independentes que são , no sentido estrito, meios com centenas de milhares de ouvintes.
Estas exceções são devidas às conjunturas peculiares ou são experiências que contém elementos que poderiam se tornar um modelo explorável?
Vamos prosseguir com a analise destes meios e procurar alguns elementos em comum. Antes de tudo, estes meios são rádios.
A emissora radiofônica, ao contrário da televisão, não precisa comprar programas de sucesso(no exterior), pois cada emissora cria os próprios. A música se encontra com facilidade e sem custo nenhum (ou quase), o meio de conexão dos correspondentes é o telefone, que, também, remete ao vivo as vozes dos ouvintes e permite, querendo, a conversação entre eles. Os custos de gestão mais relevantes são os do pessoal; ao passo que os custos para adquirir a freqüência e a licença de uso podem ser relevantes
Estas emissoras de rádios são locais (apesar de servir a uma área metropolitana muito extensa).
Sendo local, permite baixos custos operacionais, maior adesão à realidade do território servido em comparação à programação nacional, a possibilidade, no caso de eventos locais, de modificar os programas; facilita as relações com os ouvintes. A rádio se torna mais permeável aos próprios ouvintes e pode mais facilmente ter características de serviço, criando raízes na comunidade.
As rádios são autônomas do ponto de vista editorial
Apesar de a propriedade contar com forças políticas, sindicatos de associações, estas rádios que possuem uma linha editorial progressista (em alguns casos definida pelos estatutos), que, querendo utilizar um lema, poderia ser resumida em "dar voz a quem nunca a teve", elas não são a correia de transmissão de nenhuma força política ou sindical. Mesmo quando surjam polêmicas com setores político-sindicais ou outros movimentos elas conservam a própria autonomia de expressão.
As emissoras possuem um formato generalista
Nas programações destas rádios, além de ter amplos espaços destinados à informação, seja sob forma de noticiários ou de programas de aprofundamento sobre acontecimentos nacionais e internacionais, acham-se programas musicais e de entretenimentos, espaços para a sátira, a cultura, a crítica etc. Há , também, verdadeiros espaços para serviços como o dos pequenos anúncios.
As rádios são uma propriedade de tipo cooperativista
Na captação dos investimentos necessários para iniciar a atividade participaram inúmeros sujeitos políticos e sociais, tais como partidos, sindicatos, associações, cooperativas de produção e simples indivíduos que reconheceram o valor do projeto.
Nenhuma entidade possui a maioria acionaria na sociedade. No caso de Milão a propriedade evoluiu, tornando-se uma sociedade por ações (S.A.), com mais de 11.000 (onze mil) acionistas e com a cooperativa dos trabalhadores, que possui 35% das ações.
As emissoras igualam o balanço
As formas mediante as quais as emissoras alcançam o empate variam conforme o caso; mas os itens das receitas comuns que encontram-se nos balanços são: o apoio dos ouvintes, pagamentos de serviços tais como: publicidade ou pequenos anúncios, atividades promovidas pela radio para se auto financiar. Esta fórmula, óbviamente, funciona nas áreas metropolitanas, pois a população é grande e o movimento democrático no seu conjunto, apesar de minoritário, desenvolveu estruturas e sedimentou cultura e participação nas várias camadas sociais.
Os elementos acima mencionados podem ser, provavelmente, tomados como indicadores para estimular nas mais diversas situações metropolitanas do planeta o nascimento de mídias (radiofônicas) que, entre outras coisas, poderiam funcionar como suporte de realidades radiofônicas rurais ou comunitárias do próprio país.
Em tal sentido existem pelo menos duas experiências.
Uma é aquela promovida pela Oboré Projetos Especiais em Comunicações e Artes de São Paulo (Brasil), que produz programas radiofônicos sobre assuntos sociais (direito à saúde, direitos da infância, trabalhadores rurais, diversidade musical, meio ambiente, desenvolvimento local etc) que são veiculados por 2000/3000 emissoras cidadãs ( comunitárias ou comerciais ) que dificilmente poderiam produzi-los com a mesma eficiência e conteúdos científicos; a outra experiência é a da Radio Popolare de Milão (Itália) que construiu uma rede (syndication) com algumas dezenas de emissoras, graças a uma conexão via satélite, e que mandam ao ar, simultaneamente, noticiários ( com conteúdos de tipo nacional e internacional) que não estariam ao alcance de muitas emissoras por uma questão de custos. (**)
Para tornar mais concreta esta reflexão, achei interessante expor de maneira mais detalhada a experiência da Radio Popolare, rastreando sempre o esquema acima delineado.
Até 1975, na Itália, no que diz respeito à emissora de rádio e televisão, estava em vigor uma lei que entregava ao Estado Italiano o monopólio (exclusivo) de rádio e televisão. Vencido o prazo, a lei não foi prorrogada nem tampouco substituída por outra. Criou-se um vazio legislativo dentro do qual nasceram milhares de rádios e televisões particulares ( na época chamavam-se livres): para se criar uma rádio ou televisão era suficiente ligar um transmissor com a primeira freqüência que não fosse já ocupada. Criou-se aquele paradoxo pelo qual qualquer um podia começar uma rádio ou uma televisão sem nenhuma necessidade de permissão ou autorização e nenhum dever para com o Estado, enquanto para distribuir um panfleto é, ainda hoje, necessária a autorização da Prefeitura, após prévio pagamento da respectiva taxa.
Para as forças políticas e sociais daquela época parecia um sonho estabelecer um contato direto com as pessoas, sem passar pelo filtro censório e deformante da rádio e televisão do Estado. Houve, então, aquela correria para a formação de rádios e televisões , pois cada um queria ter a sua.
Neste contexto nasceram e morreram centenas de emissoras democráticas e de esquerda, como também nasceu e se desenvolveu o poder da televisão de Berlusconi. Nessa época nasceu a Radio Popolare e nos primeiros quinze anos não teve que pagar, como todos os outros, nenhuma taxa de concessão ao Estado.
Seus investimentos iniciais foram reduzidos ao mínimo indispensável, isto é, para custear os equipamentos de transmissão, já que a antena foi colocada sobre o telhado de um arranha-céu, espaço concedido, gratuitamente, pelo pai de uma simpatizante.
Os salários dos colaboradores eram, na realidade, reembolsos das despesas : era uma realidade feita de militantes na qual as deficiências técnicas e os problemas materiais eram contornados e superados graças ao ideal que animava aquele período.
Rádio Popolare é uma rádio local
Atualmente a legislação italiana, que começou a vigorar em 1990, estabelece dois tipos de concessões : uma de caráter local (comercial ou comunitária), e outra de caráter nacional (comercial ou comunitária).
As concessões para as rádios nacionais tiveram rapidamente um número definido (12 redes particulares, 3 públicas, 1 parlamentar), enquanto para as rádios locais se fotografou o existente. As concessões locais ainda não possuem um número definido por lei, pois o Ministério não conseguiu apresentar um plano satisfatório de repartição das freqüências : substancialmente esta havendo uma seleção através de pequenas e grandes concentrações, que abateu pela metade o número de rádios locais (de 2000 para 1000 aproximadamente) nos últimos 8 anos.
Radio Popolare , em 1990, escolheu ficar rádio local.
A escolha foi ditada tanto pelos motivos econômicos quanto pelos motivos políticos. Economicamente falando Radio Popolare não teria conseguido sustentar os custos e os investimentos necessários para transmitir na Itália toda.
Por outro lado, modificando a programação para torná-la mais nacional, a rádio teria talvez perdido parte das receitas resultantes do apoio local dos ouvintes e teria perdido a publicidade local sem ter a capacidade de substituí-la com publicidade nacional.
Do ponto de vista político a rádio tinha todo o interesse de contribuir para a manutenção e ao fortalecimento das realidades radiofônicas democráticas que ainda existiam nas outras regiões e cidades italianas, mas tinham grandes dificuldades de funcionamento, sobretudo do ponto de vista da informação nacional e internacional.
Na prática, tínhamos a idéia do network ( o syndication ) mediante a qual se teria socializado a parte informativa que a Radio Popolare já produzia, sendo muito "maior" e mais estruturada que a média das rádios locais italianas (por exemplo, tínhamos já 11 jornalistas profissionais, contra uma média tendente a zero) .
Apesar de ter ficado uma rádio local e ter desenvolvido o network, RP cresceu dentro dos limites, previstos pela lei, que estabelecem como cobertura máxima para uma rádio local 4 regiões contíguas ( A Itália possui 20 regiões), com no máximo 15 milhões de habitantes (A Itália tem 57 milhões).
Hoje, de fato, RP cobre autonomamente uma área de 12 milhões de habitantes no norte da Itália, e isto graças a uma rede de 14 transmissores terrestres, além de difundir o sinal através de um satélite digital que cobre a Europa e a área do Mediterrâneo.
Mas óbviamente, consideradas as características e os conteúdos "milaneses" da programação, os 60% da audiência referem-se à grande Milão, aonde moram pouco mais de 4 milhões de habitantes.
Dos 205mil ouvintes cotidianos, que Radio Popolare teve, em média, no decorrer de 2002, 116 mil eram da grande Milão, enquanto dos 416 mil ouvintes semanais, sempre segundo a média de 2002, 236mil eram da província milanêsa ( que corresponde à penetração de 8% entre a população com idade superior aos 11 anos) e somente 30mil da Lombardia (Estado).
Rádio Popolare é independente
Por independência quero dizer que RP não responde à linha política de um partido ou de um sindicato; não responde, óbviamente, aos interesses de grupos econômicos : é praticamente independente daqueles que na Itália chamamos de "poderes fortes".
Olhando a história e, de particular maneira, o nascimento da r,adio, alguém poderia pensar em encontrar elementos contraditórios com a definição de independência.
De fato, Radio Popolare veio fundada por uma cooperativa, mas as pessoas que fazem parte desta são militantes escolhidos pelos partidos e pelos sindicatos que sustentam financeiramente o projeto.
Naqueles tempos foi um verdadeiro milagre concordarem os três principais sindicatos dos metalúrgicos, os dois maiores grupos políticos extraparlamentares de esquerda de Milão (que diferentemente dos sindicatos não tinham uma unidade de ação, mas, sim, havia entre eles uma concorrência exagerada), a corrente milanêsa de esquerda do Partido Socialista, que na época era um partido de governo.
Realmente o perigo que se corria era o dos jornalistas se acharem na condição de aterem-se não a um "patrão", mas a "muitos patrões".
Nenhuma parte componente da cooperativa tinha a maioria, mas poderia acontecer que cada força se sentisse legitimada, em virtude do dinheiro dos militantes utilizado na empresa e viesse a intervir diretamente sobre o jornalista, que, na sua autonomia de juízo, tinha criticado iniciativas ou programas da força política ou sindical.
De maneira clara se estabeleceu que possíveis protestos fossem dirigidos exclusivamente ao diretor, o qual, com seu discernimento, poderia debatê-los em reuniões da redação; mas, sobretudo, as mesmas forças interessadas na manutenção deste projeto pluralista da rádio comportaram-se de maneira a não vir a interferir sobre a autonomia de juízo da redação.
Como posterior instrumento de autonomia se valorizou a assembléia dos trabalhadores, cuja importância cresceu com o decorrer do tempo. O coletivo dos trabalhadores decidia e decide a linha editorial a ser mantida sobre as grandes questões, algumas vezes também sobre as pequenas, o que, como sabemos, são os custos que se precisa pagar à democracia.
Atualmente o voto de aprovação ou de desconfiança da assembléia dos trabalhadores (que se exerce com voto secreto) no que diz respeito ao diretor é vinculante para a empresa: se o voto for negativo o diretor é removido do cargo ou no caso de nova nomeação não pode tomar posse. Inclusive, verificou-se que os trabalhadores da rádio, apesar de ser na maioria militantes de organizações, se sentiram parte do projeto radiofônico: trabalhar na rádio significou uma espécie de "segunda militancia" que deu a cada um maior determinação na defesa do projeto pluralista de comunicação baseado na autonomia de juízo da redação.
Rádio popolare tem um formato generalista
No mundo da comunicação se afirmaram teses que prevêem o fim dos formatos ´´generalistas`` dos meios de comunicação de massa, anunciando o advento, em geral, de meios com formatos especializados.
De fato, referindo-se ao setor radiofônico, rádios musicais especializadas para conquistar um determinado público, selecionado segundo a faixa etária ou de precisos parâmetros socioculturais, tiveram sucesso; menos sucesso tiveram aquelas rádios que se especializaram na informação excluindo a música e os programas de entretenimento da própria programação.
Junto a esta tendência se afirmou, também, aquela da rádio de ´´fluxo`` em contraposição à rádio de ´´cronograma``.
Na prática se afirma que a mídia não é mais expressão de uma ampla comunidade de referência, a qual, numa certa medida, se identifica com os conteúdos que a mídia expressa e com a qual mantém uma relação interativa e de ´´fidelidade``.
Esta corrente de pensamento afirma que os ritmos da vida atual e a substancial uniformização dos conteúdos e dos pontos de vista tornam inacreditável que a grande massa dos "consumidores de rádio" decida sintonizar-se naquela mesma emissora, na base de horários estabelecidos e dos conteúdos da programação, pois se parte do pressuposto que os ouvintes não sejam interessados em conteúdos diferentes daqueles uniformizados que todo mundo fornece.
Estes conceitos, que eu acho ter muito a ver com o pensamento fraco e o seu sucedâneo pensamento único, levam a dizer que sendo a audiência não motivada ou casual, a rádio em meia hora ou numa hora, no máximo, precisa fazer ouvir ao ouvinte ´´toda`` a sua programação, facilitando-lhe assim a escolha "estética" da audiência: estas rádios funcionam come um rolo e a cada meia hora ou hora elas se repetem.
Radio Popolare, apesar de ser mais ou menos especializada e famosa pela informação, põe no ar, entre às 7 e às 20 horas, 5 horas de informação, exceto nos casos graves, como o de agora, para a guerra contra o Iraque, pela qual é feita uma informação de 24 horas.
O restante da programação se resume em espaços musicais, satíricos, culturais, microfones ´´abertos`` para os ouvintes, etc....
A característica peculiar das nossas transmissões ao vivo com os ouvintes é que os mesmos gerenciam uma parte da programação: abrindo o microfone ( sem nenhum filtro) para os ouvintes, que têm assim a possibilidade de falar a própria opinião e de interagir entre eles, quebra-se o domínio da comunicação unilateral rádio- ouvinte, pois os próprios ouvintes utilizam a rádio para se comunicarem e também conosco.
Radio Popolare, inútil dizê-lo, é uma rádio de "programação". Sobretudo após às 20 horas ou aos sábados e domingos vão ao ar muitíssimos espaços especializados, que variam dos gays à musica celta. Não é o caso de falar em detalhes dos programas que compõem o cronograma da Radio Popolare, mas quero lembrar-lhe que no domingo pela manhã, entre às 9 e às 10, o nosso ibope alcança o máximo, com a transmissão para as crianças, que chega aos 65 mil ouvintes numa situação de queda demográfica e com mais de 25% dos milaneses numa faixa etária superior aos 65 anos.
RP é uma pubblic company
Em 1990, alguns meses antes que entrasse em vigor a lei que regulamentava o setor de rádio e de televisão, decidimos fazer uma aposta sobre o nosso crescimento e sobre o nosso fortalecimento.
Até então a Rádio tinha feito um ótimo trabalho, era muito conhecida e respeitada; mas muitos trabalhadores, após terem aprendido o oficio, se despediam por causa das necessidades econômicas; a sede e os equipamentos não eram apropriados, havia muito trabalho precário e como algumas partes fundamentais da programação eram entregues ao trabalho voluntário, se tornava cada vez mais difícil intervir sobre a qualidade da saída radiofônica.
Estávamos pagando o nosso ´´pecado original``, que era o de ter nascido sem capital suficiente para iniciar o trabalho de maneira apropriada e, com a gestão ordinária, nunca conseguimos ´´levantar a casa``. Como procurar o dinheiro necessário para realizar este projeto de melhoria qualitativa e de fortalecimento estrutural ?
Para proteger a nossa autonomia (não queríamos nos entregar a ninguém em troca de salários melhores) decidimos contatar todo o tecido democrático da cidade e, em primeiro lugar, os nossos ouvintes.
Criou-se uma sociedade por ações cujo capital de 200 milhões de liras (emprestado por alguns dias de um nosso simpatizante) era formado por 10mil ações com valor nominal de 10 mil liras : todas as ações eram da cooperativa.
A nova sociedade, Errepi S.A., comprou da cooperativa toda a rádio por duzentos milhões de liras e decidiu dobrar o capital emitindo 20 mil novas ações com um acréscimo de 90 mil liras, isto é a 100 mil liras. Num prazo de 2 anos foram adquiridas 18 mil ações por parte de 11 mil pessoas ou associações diferentes.
Ganhamos a aposta e com um bilhão e oitocentos milhões de liras (na época equivalentes a um milhão e meio de dólares) financiamos o desenvolvimento até hoje.
A cooperativa, que neste meio tempo tinha-se estendido aos trabalhadores e aos colaboradores, pagou a ´´dívida`` aos herdeiros das forças políticas e aos sindicatos ainda presentes na empresa com 5500 ações; tornou-se acionista de referência possuindo 14500 ações sobre as 38 mil que formavam o capital de Errepi S.A..
E´ por isso que se pode afirmar que Radio Popolare e´ uma pubblic company cujo acionista majoritário e´, por sua vez, uma cooperativa formada por 100 trabalhadores e colaboradores, e cuja finalidade não e´ obter lucros mas garantir uma informação livre de condicionamentos.
Radio Popolare é economicamente autônoma
Na ´´declaração de intenções``, que e´ a carta constitucional da rádio, redigida em 5 de abril de 1990, no último parágrafo se lê : Rádio Popolare baseia os pressupostos da própria independência, além de que na própria historia, na própria autonomia financeira, no espirito crítico, na pesquisa, na escolha de olhar para a transformação e naquela de colocar-se sempre ao lado daqueles cujos direitos são violados, ciente que ela se concretiza também num concurso de intenções com sujeitos políticos e sindicais, mas deles não depende.``
A falta de autonomia financeira com a conseqüente necessidade de recorrer aos financiamentos pelas forças políticas e pelos sindicatos, apesar de não colocar em discussão a autonomia da redação, tinha criado não poucas contradições e não era possível continuar assim.
Desde 1977 a rádio decidiu aceitar publicidade apesar de estar ciente de que a mesma tem a finalidade de, em geral, fazer aumentar os consumos e de maneira especifica os lucros para o anunciante publicitário.
Esta escolha, naquela época, levantou uma bela polêmica; mas de maneira pragmática se decidiu que a vida da rádio era mais importante do que o incômodo que algumas vezes a publicidade, que não interfere ou limita a linha editorial e que de qualquer maneira vem selecionada, procura tanto em nós quanto nos ouvintes.
Por outro lado, uma parte consistente das receitas era representado pelo apoio dos ouvintes, que anualmente faziam a carteirinha de RP. Analisando bem esta filiação, que contava com cerca de 5000 pessoas, se descobriu que menos do 40% fazia a carteirinha a cada ano, enquanto o restante 60% era formado de pessoas que renovavam a cada 2 ou 3 anos.
Como fazer para torná-la estável e alcançar todos os anos todos os possíveis sustendadores?
A idéia chegou através de uma novidade que o sistema bancário introduziu : para pagar as contas de luz, gás, telefone não era mais necessário fazer a fila no correio (na Itália as contas se pagam com boletos do correio) mas qualquer um podia autorizar permanentemente a empresa fornecedora dos serviços, a sacar da própria conta corrente as quantias necessárias.
Após a sociedade por ações lançamos aquilo que até hoje é chamado ´´assinatura``. Neste 12 anos conseguimos autorização de 15 mil pessoas para sacar de suas contas correntes, em três parcelas, uma quantia média 80 euros ao ano.
Do ponto de vista de um abstrato marketing tradicional conseguimos fazer uma operação extraordinária, dado que as pessoas pagam para um produto que recebem gratuitamente; enquanto de um ponto de vista mais verdadeiro os ouvintes pagam para ter uma rádio que continue a ser ´´fora do mercado`` preservando aquelas peculiaridades que a tornam diferente do mundo uniformizado da mídia.
Na prática o modelo de desenvolvimento destes anos se baseia tanto no apoio dos ouvintes como na venda da publicidade, que se vende ao dobro do preço de mercado, dado que nos limitamos automaticamente a carga publicitária e não interrompemos os programas com a publicidade. (A mensagem publicitária é, com certeza, mais eficaz, pois não sofre o efeito ´´marmelada``).
Dos 3,2 milhões de euros do último balanço os 40% das receitas são representadas pelas assinaturas, os 40% da publicidade (onde 70% e´ local), os 20% restante são obtidos através das iniciativas externas que a rádio organiza.
As iniciativas mais importantes são aquelas ligadas à promoção do consumo dos produtos do mercado equânime e solidário, uma loteria com prêmios, uma festa musical chamada Extrafesta, para favorecer o conhecimento das culturas dos países de procedência dos imigrados, a produção de alguns CDs.
Graças a tudo isto acima descrito há 10 anos a rádio consegue empatar o balanço (que é o objetivo da empresa, a qual trabalha sem finalidades de lucro), não obstante o número dos funcionários ter chegado a 50, todos registrados com o contrato nacional especifico dos trabalhadores e jornalistas das rádios e televisões locais, com uma sede que atualmente ocupa 2 mil metros quadrados.
Popolare Network
Um dos problemas principais que uma rádio local ou comunitária podem encontrar e´o de fazer informação nacional e internacional.
Posto que a rádio em questão tenha os recursos para pagar uma custosa assinatura às agências de notícia internacional, ou até a mais de uma, ela não resolveu absolutamente o problema.
Como sabido, as agências de noticias são cada vez mais ligadas aos interesses geopolíticos dos países aonde são colocadas e a sobrevivência delas e´, em muitos casos, determinada pelos contratos e convenções com os governos.
Só para citar um exemplo, a ANSA, a maior agência italiana de informação, com um contrato de abastecimento de todas as sedes do Estado , na Itália e no exterior, cobre mais de 50% do próprio balanço.
E´, também sabido que em caso de guerra estas agências se transformam numa espécie de assessoria de imprensa dos exércitos ocidentais, como aconteceu na guerra do Kossovo e como está acontecendo hoje com a agressão ao Iraque.
Não vou além sobre a questão das fontes de informação, pois, provavelmente, este raciocínio nos levaria a encontrar como primeira necessidade para assegurar a democracia no campo da informação, a organização de uma agência de notícias internacional independente, que talvez não é o assunto deste seminário mas, quem sabe, do próximo.
O que eu queria dizer e´ que se uma rádio ( ou qualquer outro meio) se apóia somente nas notícias de agência para contar as vicissitudes do mundo ou do próprio país, corre o risco, aliás a certeza, de representar um mundo deformado e algumas vezes se prestará a difundir verdadeiras manipulações.
Todas as fontes de informação precisam ser verificadas, inclusive as agências, mas, para realmente poder fazê-lo e para achar outras verdades, é necessária a vontade para tanto, capacidade profissional e muito, muito trabalho : para fazer informação em ´´tempo real`` e não dar as notícias de ontem, são necessários muitos jornalistas. Mas é ao próprio pessoal que as pequenas realidades não podem custear.
Como já dito, a Radio Popolare estava com quadro muito maior que as realidades radiofônicas locais,comerciais ou comunitárias. Popolare Network se baseou na proposta, feita às outras rádios, de socializar a parte nacional e internacional que Radio Popolare já produzia com um bom grau de credibilidade. A lei italiana, sob pressão da associação dos editores radiofônicos locais, permitiu que as rádios locais realizassem transmissões em comum e ao mesmo tempo para um período máximo de 6 horas por dia.
Atualmente as rádios filiadas ao circuito Popolare Network são 23 e são conectadas com satélite ´´profissional`` através do qual cada rádio filiada se liga ou desliga automaticamente das transmissões em network.
No começo as únicas transmissões que entravam em network eram os noticiários, produzidos pela Radio Popolare com a sigla Popolare Network, mas com o passar do tempo e na base voluntária, muitas rádios transmitem programas que foram planejados para ser transmitidos a nível nacional: a técnica permite fornecer às rádios, automática e exclusivamente os programas que tinham pedido.
A função das rádios filiadas não é somente passiva, pois cada uma funciona como correspondente para os noticiários nacionais e, além disso, algumas transmissões em network, como a resenha das notícias ou transmissões musicais, são produzidas de Milão ou em conjunto com RP.
As rádios são conectadas via ISDN com Radio Popolare (de onde parte a transmissão para o satélite) e isto permite a transmissão repentina, sem atrasos, tanto das vozes como da música, como se esta transmissão acontecesse num estúdio de Radio Popolare.
Cada Rádio do network continua autônoma política e economicamente, a publicidade nacional (de nicho) cobre os custos do network, a mesma é posta no ar na abertura e no final dos noticiários.
Após ter pago os custos, equivalentes à venda de 4500 comerciais de 30``, as posteriores receitas publicitárias são repartidas entre todas as rádio : no caso de não se alcançar as vendas dos 4500 comerciais (nunca aconteceu) as rádios filiadas não devem, de qualquer forma, pagar nada.
Graças a esta fórmula as rádios filiadas podem destinar todos os próprios recursos à sua realidade, fornecendo uma boa informação nacional e internacional; este fato permitiu que as mesmas rádios se reforçassem e consolidassem, como nós todos esperávamos quando pensamos no network.
A função do Estado como suporte às rádios locais de informação
Quero concluir esta apresentação dizendo a vocês quais as leis de apoio à radiofonia local de informação que estão em vigor na Itália.
Como vocês perceberam falei pouco de rádios comunitárias e muito de rádios locais, mas não foi uma distração.
Na Itália a legislação prevê 2 tipos de concessão, uma de caráter local, outra nacional. Todas as concessões podem ser ou de tipo comunitário ou de tipo comercial. Radio Maria, por exemplo, possui uma concessão nacional de tipo comunitário.
A diferença entre os dois tipos de concessão e´ que as rádios comunitárias não pagam, ou quase, taxas de concessão. Elas, em troca, não podem fazer mais que os 5% de publicidade a cada hora de transmissão, contra os 20% permitidos às outras.
Não existe nenhuma limitação imposta pela lei para a potência das instalações, mas somente o vínculo de respeitar as potências declaradas para obter as concessões em 1990.
Para as rádios de informação local, comerciais ou comunitárias que sejam, que façam entre às 7 e às 20 horas os 15% dos programas informativos, existe uma lei que prevê um reembolso dos 50% das despesas telefônicas e de energia elétrica e o reembolso dos 80% dos custos arcados para se filiar a 2 agências de notícias.
Para as rádios, que como RP fazem entre às 7 e às 20 horas os 25% de informação, a lei prevê, além dos reembolsos tarifários acima mencionados, também o reembolso dos 50% do custo dos satélites e o reembolso, sempre dos 80% dos custos de assinatura de 3 agências de noticias.
Apesar dos incentivos não serem grande coisa, me parece ter entendido que há situações piores.
*Sergio Serafini, diretor da Rádio Popolare de Milão e Coordenador da Network Radiopopolare
Workshop Genebra 2003 e a Democratização do Rádio no Brasil
31 de março de 2003
(**) (A parte geral destas notas, estendidas materialmente por Sergio Serafini de Radio Popolare de Milão são fruto do encontro ocorrido com a Radio Tierra de Santiago, a Radio Oxigene de Dakar e a Oboré de São Paulo.)
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