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  Acabou a obrigatoriedade do diploma de jornalista
  História de contradições entre ideais e práticas
   
  Por Manuel Carlos Chaparro
 
  23/06/2009

Aos 45 anos, em 1979, depois de quase três décadas de percurso profissional na imprensa brasileira, decidi entrar na Universidade para estudar e entender o jornalismo. Fiz vestibular e entrei na ECA, empurrado pela angústia de não compreender as contradições entre o ideário simbólico da atividade jornalística, no qual a sociedade acreditava, e a rotina de comportamentos sujos, em redações e nas empresas jornalísticas. Ou seja, a contradição entre os ideais e a prática.

Do lado dos ideais e dos ideários, o imaginário coletivo trabalhava com a convicção de que o jornalismo tinha compromissos, históricos e vigorosos, com valores básicos da cidadania e da dignidade humana, coisas como justiça, verdade, liberdade, igualdade, solidariedade, honestidade, fraternidade, democracia. Os próprios jornalistas articulavam esse discurso, entre si e para si próprios. E nessa crença se fundavam as expectativas sociais que atribuíam ao jornalismo, e aos jornalistas, a dignidade de instituição com o poder e o dever de investigar, denunciar e clamar contra injustiças sociais, imoralidades políticas e achincalhes da dignidade humana.

No plano das práticas, porém, a verdade era outra.

Claro que havia profissionais sérios e talentosos, assim como existiam veículos e espaços de jornalismo honesto. Alguns deles faziam o jornalismo que ganhava Prêmios Esso, o único prêmio importante disputado por bons repórteres, nos idos anos de 60, 70 e 80.  Mas, de alguma forma, a qualidade desses profissionais e desses veículos funcionava como cenário que alimentava o mito e disfarçava a realidade.

Abaixo da linha das aparências, a intimidade do jornalismo brasileiro foi, por longos anos, marcada pela vulgarização da publicidade disfarçada, das negociatas por baixo do pano, das isenções fiscais, do emprego duplo, dos empréstimos que não precisavam ser pagos, do emprego público fácil, da gratificação por fora, do alinhamento com os jogos de poder, das notícias pagas em colunas de prestígio, do “viajar da graça” e do “jeton” que remunerava setoristas em órgãos públicos. Com algo ainda pior: a tolerância em relação a tudo isso, por parte de profissionais, patrões e sindicatos. Mas a sociedade acreditava no mito do jornalismo independente, justiceiro, libertário, vigilante, honesto...

Avanços e retrocessos

A regulamentação profissional que criou a obrigatoriedade do foi instituída 1969, pelo decreto-lei 972 daquele ano. E surgiu (essa é verdade) como resposta à regulamentação das Relações Públicas, num cenário de conflito em disputas de espaço nos mercados de trabalho, nas áreas de assessoria de imprensa e comunicação empresarial. Apesar disso, algumas das mazelas éticas do jornalismo brasileiro foram debeladas ou amenizadas.

Em contrapartida, mazelas novas surgiram, com os usos e costumes de promiscuidade que organizaram as relações entre o regime militar e os meios e os processos de comunicação social pela via jornalística.  Refiro-me, de modo particular, ao emprego duplo, ao fortalecimento do governo como empregador de jornalistas, ao leite generoso das tetas publicitárias das verbas oficiais e ao dinheiro fácil de outras tetas.

Reconheça-se, entretanto: ao imporem a obrigatoriedade do diploma como instrumento de controle no ingresso na profissão, e ao garantirem seriedade ao instituto do provisionamento para os que de fato trabalhavam como jornalistas, os sindicatos conseguiram expulsar da profissão quem nela estava apenas pelas vantagens e mordomias que a carteirinha de jornalista garantia.

Não sei quantos, mas não eram poucos os advogados, os deputados, os padres e os empresários que, graças à obrigatoriedade do diploma, perderam a carteirinha de jornalista e as benesses que ela viabilizava.

Ocorreu, portanto, um banho de moralização na organização da profissão. Porém, à custa de alto preço: a proliferação descontrolada dos cursos de jornalismo, muitos deles sem qualidade, sob o estimulo da enorme demanda garantida pela reserva de mercado.

Com seus aspectos positivos e negativos, por boas e más razões, a obrigatoriedade do diploma passou a ser uma eficaz ferramenta de poder sindical. Mas, atingida pelas transformações produzidas pela revolução tecnológica e pela redemocratização, a argumentação do controle da profissão pelo diploma perdeu força. A sustentação das razões pró-obrigatoriedade tornou-se particularmente difícil depois da Constituição de 1988, a carta das liberdades e dos direitos.

O território da crise que pôs em causa a obrigatoriedade do diploma foi o das colisões entre princípios, entre valores e entre direitos, numa democracia em construção. São conflitantes entre si várias das liberdades e vários dos direitos assegurados pela Constituição que Ulisses chamou de “Cidadã”. E esses conflitos aguardaram até agora a jurisprudência de base que o STF agora criou – quer se concorde ou se discorde da decisão e das razões que a motivaram.

Tempo e razões para uma nova discussão

Com a derrubada da obrigatoriedade do diploma, urge dar início a uma nova discussão, conceitualmente enriquecida com novos argumentos, sobre a importância, os papéis e a dignidade do jornalismo e do jornalista na sociedade informacional em que vivemos.Tendo em vista uma regulamentação profissional moderna, democrática e adequada aos tempos novos que vivemos, para a normatização do ingresso na profissão e do seu exercício.

Na minha avaliação, levando em conta as complexidades e liberdades do mundo atual, e o que ele exige do jornalismo, o ingresso na profissão de jornalista deveria ser acessível a quaisquer cidadãos no pleno uso dos seus direitos, desde que provem ter formação superior concluída em qualquer campo do conhecimento. Precisariam, porém, passar por um período de estágio ou experiência probatória (no mínimo seis meses, no máximo um ano), com justa remuneração, e com a obrigação de nesse período fazerem estudos sobre jornalismo, com orientação pedagógica. Já aos cidadãos formados em jornalismo seria assegurado o acesso direto e pleno ao exercício da profissão. E igual direito deveria ser assegurado àqueles que, com formação superior em outra área, tivessem feito pós-graduação em jornalismo.

Mas essa é apenas uma opinião, a minha opinião, que pouca ou nenhuma importância tem. Porém, o vazio que ficou na regulamentação profissional da atividade jornalística exige que novos estudos e novas negociações se iniciem de imediato, com representatividade, argumentos e razões que levem em conta a relevância sócio-cultural, a dignidade e a identidade ética da profissão de jornalista. O que implica levar o debate para terrenos argumentativos mais conceituais e menos corporativos.

Por uma “Lei Maior"

Do meu ponto de vista, a abordagem prioritariamente corporativa empobreceu a discussão em torno da obrigatoriedade do diploma, com uns a favor outros contra, e só, como se o começo e fim de tudo estivesse em disciplinar e limitar o direito de ser jornalista.

Ora, a regulamentação profissional tem de ser decorrência de razões maiores. A argumentação deve-se dve-se ater a um conceito de sociedade. O que pressupõe o entendimento claro das responsabilidades e das competências (éticas, técnicas, discursivas e intelectuais) exigidas do jornalismo em tal sociedade, no recorte de uma dada realidade – no caso, a realidade brasileira, com suas peculiaridades e sua história, na experiência própria de fazer jornalismo.

Em resumo: por mecanismos legais e legítimos de representação, a sociedade e os jornalistas precisam encontrar caminhos e formas de chegar a uma “Lei Maior” da profissão - algo que em alguns países é chamado de “Estatuto do Jornalista”, com forma e força de Lei.

Dessa “Lei Maior”, e não dos jogos de poder em disputas corporativas, deveriam derivar os documentos normativos do exercício profissional: a regulamentação do acesso à profissão e os códigos ético-deontológicos para o seu exercício.

Para se chegar a esse estágio, talvez o Brasil precise criar alguma entidade de direito público que, com independência, possa atuar no território da regulamentação profissional dos jornalistas, em articulação com os poderes legislativos do País representativos do povo e da sociedade.

Como chegar aí, não sei. Mas se Portugal, por exemplo, tem o seu Estatuto do Jornalista, e uma comissão presidida por um representante do Poder Judiciário que acomanha oos procedimentos de ingresso na profissão, porque não podemos nós, aqui, avançar até esse ponto?

Claro que não estou propondo a transposição pura e simples de experiências européias para o Brasil. São realidades, tradições, problemáticas, vivências e convicções diferentes. Mas há que levar em conta, como referência para as discussões a travar entre nós, as experiências de outros povos e de outras culturas, nas várias partes do mundo onde o jornalismo está vinculado a processos de construção democrática. E sem a obrigatoriedade do diploma.

 
 

Doutor em Ciências da Comunicação e Livre Docente da Escola de Comunicações e Artes da USP. Atua no Jornalismo desde 1957 sendo quatro vezes premiado com o Esso de Jornalismo. Foi presidente da INTERCOM - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, principal sociedade científica brasileira na área da Comunicação Social, e é membro do Conselho de Ética da Abracom – Associação Brasileira das Agências de Comunicação. Mantém o blog na internet http://www.oxisdaquestao.com.br  

 
 
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