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  Telecomunicação, radiodifusão e os vícios de hermenêutica. De como o opressor cria o direito e define os oprimidos que dele não desfrutarão. Violência estatal contra o direito de informar e ser informado
   
  Por Armando Coelho
 
  13/06/2007

Telecomunicação, radiodifusão e os vícios de hermenêutica. De como o opressor cria o direito e define os oprimidos que dele não desfrutarão. Violência estatal contra o direito de informar e ser informado

INTRODUÇÃO
“Desde a invenção do jornalismo no Império Romano, o Estado e sua polícia tentam impedir a liberdade de circulação de idéias e a livre comunicação, que são naturais como a circulação do sangue”, diz em editorial, o jornal Rádio Comunidade, edição 3, veiculado em outubro de 2002. Mais à frente, como que para chamar a atenção do leitor para perpetuação do absurdo, relata que, no “século XVII, a polícia inglesa levava o terror aos lares, na madrugada, prendendo os jovens que usavam a tipografia inventada por Guttenberg e que era um privilégio dos reis e da igreja”. E não fica por aí. No século passado, “a KGB, a famosa polícia secreta soviética, apreendia máquinas de datilografar de quem não era membro do partido único”. Como que para reafirmar o congelamento de uma cena, pontua o Brasil: “durante a ditadura militar, eram presos os mimeógrafos estudantis.”

O editorial nos reporta à cenas que pareciam fazer parte do passado, mas que lamentavelmente são cenas do dia-a-dia. De forma truculenta, ilegal, mediante constrangimento e cercados de dúvidas quanto a real motivação, agentes do Governo Federal, sejam eles representados pela Anatel ou pela Polícia Federal, vêm reproduzindo ações semelhantes, desenhando um quadro paradoxal quando confrontados com a Constituição Cidadã de 1988. Tudo para reprimir pequenas emissoras de rádio e televisão denominadas comunitárias. Acobertados pelo suposto manto da legalidade e pretensamente justificados pelo cumprimento do dever, tais agentes prendem cidadãos e lhes expropriam seus bens, enquanto comunidades são mutiladas de seus pequenos veículos de comunicação.

Em síntese, a atualidade evidencia nada muito diferente do que ocorria nos tempos do Império Romano e da KGB. Á semelhança, pessoas são presas, constrangidas, seus bens são apreendidos, cabendo o registro de que estes últimos têm como destino o apodrecimento nos “porões da democracia”, conseqüência de ações ilegais da Anatel (que não tem poder para lavrar auto de apreensão) , cujo trabalho conjunto com a Polícia Federal transcorre sem o devido processo legal .

A prática repressiva tem como fundamento prático, supostas interferências até na navegação aérea, como as exibidas ontem, 29 de maio, no Jornal Nacional da Rede Globo, que, aliás, não ouviu o outro lado ou qualquer das inúmeras entidades que congrega pequenas emissoras, assim como o fez nas demais reportagens que exibiu na edição de 29 de maio sobre a Operação Navalha. Mas, quem ousaria dizer sim, quando o pretenso discurso científico diz não?

O tema é tratado como se vivêssemos na idade da pedra ou diante de uma realidade irreversível, a justificar ironias do gênero: se tais rádios derrubassem aviões Sadan Hussein teria vencido a guerra.

Assim, ao suposto argumento factual incontornável, como se todas as pequenas emissoras estivessem instaladas na vizinhança dos aeroportos, aparecem também o apoio da mídia e interpretações distorcidas do ordenamento jurídico. Com esse aparato, está declarada a guerra contra direitos fundamentais do cidadão. Entre eles, o direito de informar e ser informado, de liberdade de expressão e de culto, cujo exercício não é crime, principalmente, como lembra o juiz Paulo Fernando Silveira , quando o interessado requereu a autorização ao órgão governamental e dele não obteve resposta alguma. Ensina o magistrado que, em sendo o espectro eletromagnético bem de todos, cabe ao Governo Federal apenas o gerenciamento, não loteá-lo a quem bem entende. Os donatários, uma vez investidos nessa condição, sentem-se proprietários do bem público.

Na prática, O Governo Federal é omisso e atira as rádios na ilegalidade, tendo inclusive fechado escritórios nos estados, onde os interessados tentavam obter autorização para se enquadrar na lei hedionda. Alguns que conseguiram romper as barreiras oficiais tiveram seus pedidos paralisados por anos a fio.

Eis o fato social, eis o ponto de partida na formação da idéia do Direito, “que surge das necessidades fundamentais das sociedades humanas, que são reguladas por ele como condição essencial à sua própria sobrevivência”. No caso específico, o fato serve de pano de fundo para o debate sobre o que, nesta peça, chamaremos genericamente de radiodifusão comunitária ou uso de espectro eletromagnético, sobre o qual se abre um debate na esfera penal, vale dizer, no âmbito do Direito Penal, enquanto regulador das relações do indivíduo com a sociedade. Sem perder de vista, claro, que “os limites do Direito Penal são os limites do Estado” . E, claro, o limite do Estado é a sua Carta Fundamental.

Nos meios policiais, nos escaninhos da Anatel ou nos tribunais, as pequenas emissoras são tratadas por “rádios piratas”. Em outros círculos são simplesmente tratadas por “pequenas emissoras”, “rádios alternativas” e nos meios universitários são, singularmente, chamadas de “rádios livres”. Todas trazem uma marca comum, que é o fato de serem de baixa potência e estarem restritas a pequenas comunidades, embora com discursos distintos, que a restrição deste espaço não permite aprofundar.
Com aquelas características, quando flagradas por agentes do Governo (Anatel ou Polícia Federal) fica aberto um longo debate que envolve vários diplomas legais a saber: Lei 9.612/78 de 19 de fevereiro de 1978, regulamentada pelo Decreto nº. 2.615, de 3 de junho de 1998; Portaria do Ministério das Comunicações de nº. 191, de 6 de agosto de 1998; Lei 4.117/62, antigo Código de Telecomunicações. Complementando o quadro jurídico, não se pode perder de vista a Constituição de 1988 e, finalmente, o Decreto 678, de 6 de novembro de 1992, que materializou a vinculação do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969.

Sob o aparente fenômeno de uma antinomia jurídica, trataremos de contradições encontráveis na aplicação daqueles diplomas legais, sobre os quais pretendemos discorrer e, se possível, oferecer um contraponto ao pensamento vigente. A intenção é dar uma contribuição para melhor entender este grande paradoxo da Constituição Cidadã que, sistematicamente violada, acaba revelando a inconsistência de nossa Democracia. Para uma melhor compreensão desse processo e provocar uma maior reflexão sobre o problema, será inevitável uma incursão em palavras-chaves: teleologia, essência, princípio e bem jurídico.

ORDENAMENTO JURÍDICO
Sob o ponto de vista legal em sentido estrito, a radiodifusão comunitária é tratada de forma específica na Lei 9.612/98 de 19 de fevereiro de 1998, que institui o sistema de radiodifusão comunitária e dá outras providências. É ela que no seu Art. 1º, define a questão: “Denomina-se Serviço de Radiodifusão Comunitária a radiodifusão sonora, em freqüência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço”.

A Lei nº. 9.612 foi regulamentada pelo Decreto nº. 2.615, de 3 de junho de 1998 e pela Portaria do Ministério das Comunicações de nº. 191, de 6 de agosto de 1998. Referidos diplomas vieram, em tese, para explicitar os comandos democráticos da Carta Magna e atender aos anseios de cidadania da população brasileira. Tinha, em análise preliminar, o propósito de libertar as populações carentes das injustas, ilegais e abusivas intervenções do Ministério das Comunicações e das ações muitas vezes truculentas do Departamento de Polícia Federal.

Ora, considerando a existência de uma norma específica tratando deste assunto, impõe a lógica primária que o tema deva ser tratado com base naquela lei. Não obstante isso, são incontáveis os enquadramentos criminais quanto ao uso de espectro eletromagnético, baseado em outros diplomas. Entre eles, a Lei 4.117/62, antigo Código de Telecomunicações, particularmente o Art. 70: “Constitui crime punível com a pena de detenção de um a dois anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta lei e nos regulamentos”.

Outro diploma legal que vem sendo exaustivamente utilizado é a Lei 9.472/97, que institui o Serviço de Telecomunicações, que trata especificamente de telecomunicações. Vale dizer, até o momento, constatamos que, não raro, em detrimento das comunidades carentes, três diplomas legais vem sendo aplicados: Leis 4.117/62, 9.472/97 e 9.612/98. Com poucas exceções, os enquadramentos feitos baseados naquela legislação têm prosperado nos Tribunais, o que por si só vem a demonstrar uma flagrante contradição, ou a perda de referência dos direitos fundamentais. Noutras palavras, faz-se necessário analisar os conflitos decorrentes da aplicação de tantos dispositivos diferentes, não raro com interpretações distorcidas, forças pelo pensamento dos que estão a serviço dos grandes veículos de comunicação.

Não obstante os três diplomas legais já mencionados, cumpre trazer à discussão o fato de que, consolidada formalmente a Democracia no Brasil, já no plano da nova Constituição de 1988, aparecem os dispositivos básicos sobre a liberdade de expressão e o uso do espectro eletromagnético, consubstanciados nos os artigos 5º, 215, 220. São eles:
“Art. 5º ... IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

“Art. 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e difusão das manifestações culturais”.
Art. 220 da Constituição Federal:

“Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”.

Nunca é demasiado lembrar que, no plano constitucional, além do rigoroso espírito cidadão, o que inspirou a Carta Magna nesse segmento foi Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, o qual o Brasil assinou e se comprometeu a cumprir. Para tanto, superado o regime de exceção, o Decreto 678, de 6 de novembro de 1992 consolidou o ideário daquela convenção internacional. Vejamos o que diz aquele tratado, que foi recepcionado pela nova Carta.

Art. 13. Liberdade de pensamento e de expressão
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:...
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências rádio-elétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.(Grifo nosso)

A ESSÊNCIA DA NORMA COMO QUESTÃO FUNDAMENTAL
Teleologia, essência, princípio, bem jurídico são palavras que poderiam vir no final deste texto, por ser uma conclusão natural de um caminho. Elas estão colocadas no início, por configurarem víeis inevitável, sob pena de não se chegar a lugar algum. São palavras-chaves indispensáveis para o debate sobre radiodifusão comunitária, na medida em que, no trato dessa questão, as palavras de ordem ou a principiologia das idéias se afiguram distorcidas, marcadas pelo preconceito, onde fatores políticos e econômicos têm se sobreposto à boa tradição hermenêutica. E, como corolário natural dessa anomalia, as sentenças judiciais trazem essa marca viciosa, não raro, em detrimento da Justiça.
Usamos propositadamente o termo teleologia, porque não há como se discutir nenhuma vertente do direito, sem que se tenha a idéia exata do que está por trás de uma determinada realidade, particularmente as de natureza jurídica. E se nos fosse permitida uma colocação menos ortodoxa, falaríamos de teleologia como o conjunto das especulações aplicadas à noção de finalidade ou doutrina acerca das causas finais. Ou seja, a teleologia como doutrina que estuda os fins últimos da sociedade, humanidade e natureza ou, como ensinam alguns manuais, o para-quê de todas as coisas. Trata-se, portanto, de indicador que nos endereça para a essência daquilo que se pretende tratar, o ponto fundamental e determinante do sentido filosófico no qual se inspirou o legislador.
Outra idéia introdutória assinalada vem através do termo princípio. Trata-se de dado da maior relevância no exame da questão da radiodifusão comunitária pelas razões já conhecidas, já que os resultados finais das lides a ela relacionados, são também viciados também nessa vertente. A propósito, Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele; disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, é o que ensina Maurício Ribeiro Lopes.

Finalmente, com a regular compreensão da teleologia, da busca do essencial no trato do assunto e a principiologia como mandamento nuclear, cabe considerar dentro da perspectiva criminal que norteia a matéria, o conceito de bem jurídico e mais especificamente o bem jurídico protegido pela legislação específica no debate sobre a radiodifusão.

É bem verdade que, em seu sentido amplo, a noção de bem jurídico ainda é indeterminada conceitualmente. Como também é provável que, em sendo o Direito um objeto cultural, criado pelo homem e dotado de conteúdo valorativo, está sujeito a essa própria dinâmica cultural do homem. Vale dizer, o Direito é dinâmico e não estático. Por assim ser, é possível que nisso resida a dificuldade de se conceituar bem jurídico, como conseqüência natural desse próprio processo dialético do Direito. É dentro dessa dinâmica que o próprio homem criminaliza ou descriminaliza condutas, aumenta ou reduz penas ao longo dos anos.

De qualquer forma, mesmo inserido no burburinho e ou evolução de conceitos, existe um consenso quanto à existência de um valor atribuído a determinados interesses materiais ou não da sociedade. Para uma melhor compreensão, estamos diante de um esforço na busca de objetividade, considerando o bem jurídico como algo que a sociedade reconhece como sendo bom, do interesse de todos e que precisa ser coletivamente protegido. Visto sob a visão normativo-positivista, Binding considera bem jurídico tudo aquilo que é eleito pelo legislador como tal, ou seja, aquilo que está escrito na lei.

Ainda na busca da essência da norma e num esforço primário de didática esclarecedora, nossa discreta contribuição pessoal para o debate poderia advir de um exemplo singular. Que venha à baila para esse fim, o Estatuto da Criança e do Adolescente ou mesmo o Estatuto do Idoso . Ora, se essas normas foram criadas com o objetivo de dar proteção ao menor e ao cidadão idoso, não vemos como algo possível, que se faça interpretação contrária aos interesses da criança ou de qualquer ancião. Conceber essa inversão seria uma verdadeira monstruosidade jurídica, tendo em vista ser vedado interpretação da norma, de forma contrária ao bem jurídico que ela visa proteger ou a finalidade para a qual foi criada.

TELECOMUNICAÇÕES E RADIODIFUSÃO
Superados, mesmo que de forma superficial, as questões relacionadas a essência das normas que disciplinam o assunto, entendemos delas terem aflorado indicadores para a aplicação da lei, de maneira mais justa. Já neste ponto, a contribuição que se pretende dar é no sentido de um exame mais apurado de duas questões fundamentais, correspondentes a dois fenômenos: telecomunicações e radiodifusão.

Durante a vigência plena do antigo Código de Telecomunicações, nem o legislador nem a lei fazia distinção entre essas duas vertentes do uso do espectro eletromagnético, ou seja, telecomunicações e radiodifusão eram tratadas de forma indistinta. E, nos últimos anos, “a diferença entre telecomunicações e radiodifusão vem se tornando cada vez mais tênue, por conta do processo de convergência tecnológica”, diz o jornalista e professor Gustavo Gindre, segundo quem, há no mundo uma tendência para unificação. Os Estados Unidos aprovaram leis em 1996 e o Reino Unido em 2003, num movimento que se repete em praticamente toda a União Européia. No Brasil, porém, essa diferença se mantém.

Como registrado acima, há uma tendência mundial de reunificação de conceitos, forçados pela tecnologia. Uma tendência que vem repercutindo no Brasil, ao ponto de a Associação Brasileira de Roteiristas de Televisão, Cinema e Outras Mídias, através de manifesto, ter enfatizado a “urgente necessidade de uma Lei Geral para as Comunicações, que supere a atual diferença entre as Leis para Telecomunicações e a Leis para Radiodifusão. A propósito, três registros importantes: primeiro, se estudiosos e críticos clamam pela mudança e pela unificação, é porque essa diferença existe e é indiscutível. Segundo, a reunificação dos conceitos na esfera internacional tem sido forçada pelas novas tecnologias. Terceiro, tal reunificação só tem ocorrido através de lei.

No Brasil, porém, vigorou durante muito tempo essa idéia de convergência, ou seja, telecomunicações e radiodifusão configuravam o mesmo fenômeno, até serem separados através da emissão de diplomas legais próprios. Aliás, e aqui vale o registro, tal separação ocorreu para atender os interesses dos grandes grupos econômicos da comunicação, não por qualquer outro motivo. Este também é o pensamento do professor Venício Artur Lima, criador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB). “Aparentemente, o poder político dos grupos que historicamente controlam a radiodifusão no Brasil é muito grande e seriam os seus interesses que estariam sendo preservados no anteprojeto de Lei”, afirmou a propósito de um novo projeto de comunicação no Brasil.

A avaliação dos estudiosos é que esses grandes grupos sempre desejaram ver regulamentado (e punido) o setor de telecomunicações, deixando livre a radiodifusão, com a robusta e polêmica bandeira da liberdade de expressão e de imprensa. Noutras palavras, argumentam os críticos, os grandes grupos queriam este segmento livre de regulamentação, abrindo, também, por conseqüência, uma rota de fuga para as eventuais penalidades. Ou seja, ver os dois temas tratados juntos sempre assustou os comunicadores, os titulares de rádios comerciais.
Distanciando-se um pouco daquele móvel, daquele espírito que em parte norteou a separação dos dois conceitos, o fato é que, pelas vias legais, telecomunicações e radiodifusão passaram a ser tratados de forma distinta, em diplomas legais diferentes. Consolidadas as idéias, temos que, quando se fala em telecomunicações, esta materialmente se desenvolve entre um emissor determinado e um receptor potencialmente ativo, ou seja, ocorre a interatividade do receptor em relação ao emissor. Esse processo interrelacional é mediado ou viabilizado por empresas especializadas, servindo como exemplo empresas como Telefônica, Telemar, as denominadas teles.

A propósito, o Decreto 97.057, de 10/11/88 , no artigo 11º “Circuito de Telecomunicação: conjunto de meios necessários a criar um enlace físico, ótico, ou radioelétrico, para a transmissão bilateral de sinais de telecomunicação entre dois pontos” (bilateralidade). Mesmo quando se refere a unilateralidade, este diploma refere-se a fator transmissivo relacionado à comunicação entre dois pontos.

A Teleco, comunidade virtual composta por especialistas em telecomunicação, assim se pronuncia sobre este tema. “A Emenda Constitucional nº 8, ao introduzir a condição de exploração dos serviços públicos de telecomunicações pela iniciativa privada, acabou por diferenciar os serviços de telecomunicações e radiodifusão. O marco regulatório do setor de telecomunicações, a LGT, reforçou esta diferença ao manter a radiodifusão regida pela Lei n. º 4.117/62 e reafirmar a validade da Lei do Cabo para disciplinar uma das formas do serviço de TV por assinatura”.

Por outro lado, no caso da radiodifusão, o resultado final do processo fica em aberto, cujo receptor indeterminado, anônimo, é geralmente múltiplo e, diferentemente das teles, não depende de licença ou pagamento de contas para ter acesso à mensagem transmitida. É o caso do ouvinte do rádio que, basta ter um pequeno rádio adquirido até em camelôs, e estará apto a receber a informação. Trata-se de receptor passivo dentro do processo comunicacional e por isso não interage de forma efetiva, direta e imediata com o transmissor ou emissor, no caso, uma emissora AM ou FM de rádio. Ou seja, não ocorre interatividade entre emissor e receptor. Sem embargo, a comunicação radiofônica está a serviço do público, livre de ônus, diferentemente dos serviços de TV por assinatura ou de telecomunicações.

Sobre a radiodifusão, o registro feito pela Teleco vai no sentido de que, “Serviço de radiodifusão é definido como o serviço de comunicação eletrônica de massa, público gratuito, prestado diretamente pelo Estado ou por sua delegação pela iniciativa privada, com finalidade educativa, cultural, recreativa e informativa, é considerado serviço de interesse nacional, sendo permitido somente para exploração comercial, na medida em que não venha a ferir esse interesse e aquela finalidade”. Portanto, está evidente tratar-se de fenômenos absolutamente distintos.

VÍCIOS DE INTERPRETAÇÃO
O exercício singular percorrido até agora, onde se tenta buscar a essência da norma, com a perfeita identificação do bem jurídico protegido, poder-se-ia chamar de interpetação teleológica da norma. Para o caso específico, nunca é demasiado lembrar que a Constituição de 1988 é sabiamente chamada de Diploma da Cidadania, onde alguns bens foram elevados ao status constitucional, por sua relevância para a sociedade. Entre eles, o direito à informação, liberdade de expressão, fenômeno que se processa através da comunicação. Não basta criar ou definir o direito, faz-se necessário a garantia de seu exercício.

Os meios de comunicação, segundo Jean D´Arcy , são fatores determinantes para a formação das estruturas sociais e políticas. Ele trata a comunicação como necessidade humana fundamental. No específico, falamos de informação, comunicação, da liberdade de expressão, consolidação da cidadania, que se processa, em parte, através do espectro eletromagnético. A Constituição vigente é cidadã, sendo cediço na doutrina que o espírito da lei não pode ser invocado contra a liberdade. Vale dizer: é impositivo fazê-lo a favor.

Aquele espírito norteador surge como viés cidadão, democrático, libertário e nasceu muito antes da atual Constituição. Como já visto no item precedente, ele vem de 1969 com o Pacto de São José da Costa Rica, e, paradoxalmente, em plena ditadura militar. A essência do pacto é o direito à liberdade de pensamento e de expressão e ainda o direito de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza. Com o mesmo espírito, condena a censura prévia; e para proteção desses direitos, é taxativo ao rechaçar restrições ao direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências rádio-elétricas – grifo nosso.

Na observância daqueles princípios, a Carta Magna de 1988 passou a dispor no Art. 220
“Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”.

Nunca é demasiado lembrar que o “direito regula sua própria criação, de modo que uma norma jurídica regula o procedimento pelo qual outra norma jurídica é produzida, e – em diversos graus – também regula o conteúdo da norma a ser produzida”, ensina Kelsen. Mas, não obstante a máxima constitucional, de que nenhuma lei poderá conter dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação por qualquer meio, o que se constata na prática é a existência de uma lei cheia de restrições, que prescreve até mesmo a obrigatoriedade de residência num raio de um quilômetro, como é o caso da Lei 9.612/98. Vale dizer, a lei configura o próprio embaraço e sua interpretação imposta aos tribunais, pelos controladores dos meios de comunicação, mais ainda.
A flagrante contradição viola não apenas o espírito do Pacto de São José da Costa Rica de 1969, mas a própria Constituição de 1988. A essa idéia deve-se somar o sentido de obrigatoriedade do fiel cumprimento, como assinalou Hildebrando Accioly, em seu Manual de Direito Internacional, onde destaca a “primazia do direito internacional”, onde prevalece a regra do “pacta sunt servanda” (os pactos devem ser cumpridos). Assim, uma vez assinado, não depende da vontade arbitrária do Estado seu cumprimento, já que o direito internacional convencionado é superior ao do Estado.

Ora, em sendo a Constituição marcada pelo espírito cidadão, não se entende que dela possa derivar norma inferior ou dela derivada, que contrarie sua essência. Nenhuma interpretação contrária pode ser reconhecida, senão aquelas contidas em seus pilares. As reiteradas interpretações em contrário configuram vícios inaceitáveis, cuja eliminação muito contribuiria para uma aplicação mais justa da lei.
Outro ponto a ser assinalado sobre este assunto, é que a nova Constituição separou os dois conceitos, ou seja, telecomunicações e radiodifusão, tratando-os não como sinônimos, mas como realidades distintas. A separação das idéias do ponto de vista conceitual ficou clara em tópico específico. Agora, sob a ótica positivista, temos que em 1997 veio o Código de Telecomunicações - Lei 9.472/97 e posteriormente, em 1998, foi promulgada a Lei de Radiodifusão, a de nº. 9.612/98. O risco de cair no lugar comum é grande, mas é inexorável reiterar que uma lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando com ela é incompatível e ou regule inteiramente a matéria.

Não obstante o lembrete sobre a clássica assertiva, lei posterior versus anterior, cabe considerar no caso específico a separação das idéias e ou conceitos já evidenciados. Nesse sentido, temos que, seguindo a tradição da Lei nº. 4.117/62 que institui o Código de Telecomunicações, o novo diploma, a Lei nº. 9.472/97, tinha como objetivo disciplinar o uso do espectro como um todo, ou seja, telecomunicação como gênero maior, no qual estaria incluso a radiodifusão. Veio, portanto, para dispor sobre a organização dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador.

Mesmo tratados até 1997 num só diploma, para reiterar o positivismo normativo, fica claro o tratamento diferenciado quanto à telecomunicação e radiodifusão, servindo de exemplo o artigo 158:

“Observadas as atribuições de faixas segundo tratados e acordos internacionais, a Agência manterá plano com a atribuição, distribuição e destinação de radiofreqüências, e detalhamento necessário ao uso das radiofreqüências associadas aos diversos serviços e atividades de telecomunicações, atendidas suas necessidades específicas e as de suas expansões”.
§ 1° O plano destinará faixas de radiofreqüência para:
....
II - serviços de telecomunicações a serem prestados em regime público e em regime privado;
III - serviços de radiodifusão;

O vértice diferencial é acentuado, na medida em que o legislador do Código de Telecomunicações trata telecomunicação e radiodifusão como particularidades distintas, de maneira que ao referir-se à telecomunicação o faz como serviço tarifado, em que o receptor, enquanto destinatário final do serviço, paga por aquele serviço. Ou seja, refere-se a um tipo de serviço cuja idéia mais comum é o da telefonia, por exemplo. De maneira contrária, a radiodifusão é tratada como um serviço gratuito para o seu destinatário final, bastando para tanto que tenha o seu aparelho receptor. Trata-se, portanto, do rádio ou da radiodifusão.

Assim sendo, por serem temas e situações distintas, passaram a ser tratados por diplomas diferentes, de maneira que, quando se constata a aplicação do Código de Telecomunicações no caso de radiodifusão comunitária, isso causa perplexidade aos estudiosos. Afinal, parece não existir dúvidas de que o assunto deveria ser regido pelos brocardos lex posterior derogat legi priori (norma posterior revoga anterior) e lex specialis derogat legi generali (norma especial revoga a geral).

A violação daqueles princípios tem sido constante, na medida em que, existindo uma lei específica para a radiodifusão comunitária (Lei 9.612/98), que é posterior e especial, não há que se falar na aplicação do código de telecomunicações (Lei 9.472/97). Mesmo diante de alguma similaridade factual de temas tratados supostamente em comum nas duas normas, o grande referencial ainda deve ser a Constituição vigente. Assim, sob qualquer vertente, o enquadramento dos temas de radiodifusão em outros diplomas legais se afigura inadequado, sujeito, no mínimo, à revisão.

Quanto mais se avançar nessa questão, mais o estudioso irá se deparar com paradoxos. Mesmo diante das evidências aqui documentadas, na vida prática é comum a aplicação da Lei 9.472/97, e, muito particularmente no caso de pequenas emissoras em funcionamento sem autorização. Muitas autoridades policiais têm recorrido ao artigo 183. E, pasmem, esse entendimento vinha sendo ratificado, com o aval do Ministério Público, junto ao Poder Judiciário.

Art. 183. Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação:
Pena - detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Com propriedade, o Procurador da República Daniel Sarmento assinalou que o simples exame das penalidades previstas nesta lei são indicadoras de sua não aplicabilidade ao assunto. No caso concreto, verdadeiras engenhocas são tratadas como “emissoras piratas”, cujo custo total da aparelhagem - quando novos, na maioria das vezes, está longe de alcançar a cifra dos R$ 10 mil previstos no artigo 183. A propósito, lembrou aquele membro do Parquet, todas as vezes em que uma autoridade se depara com desproporcionalidade entre o fato e a pena, o aplicador está diante de uma lei inaplicável ao fato. E, os exemplos falam por si: o artigo 179 prescreve até multa de R$ 50 milhões!
Com o avanço dessas discussões e as inúmeras provocações tanto nas primeiras quanto nas segundas instâncias do Poder Judiciário em todo o País, finalmente o Superior Tribunal de Justiça, através da 6ª turma , reconheceu o erro que durante anos estava sendo cometido. Assim, pontificou: a Lei 9472/98 não se aplica aos casos de radiodifusão comunitária. No entanto, manteve a idéia de criminalização da conduta, declarando a aplicabilidade da Lei 4117/62 para o que diz respeito ao tratamento penal da questão. Para tanto, reportou o leitor ao Artigo 70 desta Lei, que preceitua:

Art. 70: “Constitui crime punível com a pena de detenção de um a dois anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta lei e nos regulamentos”.

Não obstante a manifestação daquela Corte, é fácil constatar que o artigo 70 fala em telecomunicações. E, nesse ponto, após tantas considerações a respeito das distinções feitas e, em observância ao princípio da tipicidade e que o Direito Penal não admite aplicações analógicas, torna-se inadmissível agir por presunção, ou seja, não é lícito presumir que tal dispositivo, ao referir-se à telecomunicações, esteja pretendendo alcançar a radiodifusão. Fere o princípio da legalidade, até porque, o fenômeno da radiodifusão comunitária não era até então conhecido. Fere um princípio temporal, pois seria o mesmo que tentar atingir com essa lei, a radiodifusão através da internet, fenômeno também inexistente no Ano de 1962.

Mais uma vez a interpretação dominante se opõe ao interesse dos cidadãos menos afortunados. É incômodo, mas urge lembrar que, até hoje, tendo em vista os mesmos princípios (temporal e legalidade), os nossos Tribunais não têm sustentado inúmeros enquadramentos legais contra o organizado, no que tange ao emprego de tecnologia moderna, não contemplados pelo arcaico ordenamento jurídico-penal brasileiro. Mas, no que tange às pequenas emissoras, princípios comezinhos com da legalidade, interferência mínima, da insignificância, da proporcionalidade, temporariedade, razoabilidade e outros são esquecidos. Tudo isso a justificar que a discussão do fato social em comento e a interpretação da legislação vigente é viciada.

Retome-se pois, o debate no campo da atipicidade, entendimento que encontra amparo em alguns segmentos do Ministério Público, que merecem transcrição: “...como defensor do regime democrático, da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, um membro do MPF, não pode se transverter em capitão de mato dos donos do espaço da radiofreqüência, caçar sem escrúpulos cidadãos que procuram exercer seus direitos e serem úteis à sociedade, utilizando baixas potências sem prejudicar ninguém, contribuindo para o exercício democrático e para, informação de um povo com dificuldade de memória histórica”.
Nessa trilha a posição de Cláudio Fonteles , para quem a Lei 9612/98 não contempla infração criminal.

Mas, se por outro lado, aceitássemos sem reservas ou restrições o pontificado do STJ , estaríamos, na grande maioria dos casos, diante do exercício de radiodifusão de baixa potência. Majoritariamente, emissoras com menos de 100 watts, embora como regra haja o referencial de 25 watts, o mais comum entre as emissoras dessa espécie. Ora, tal fenômeno quando contraposto aos 5 mil watts das emissoras comerciais, se transformariam numa fração diminuta, perdendo o caráter de ilicitude, com fundamento no princípio da insignificância ou da bagatela. É de se reconhecer que o princípio da insignificância penal não se encontra expresso no nosso direito positivo, mas é vasta a jurisprudência no sentido de sua aplicação, até em observância a outros norteadores da aplicação do direito, como a razoabilidade, da proporcionalidade ou adequação social.

Sem embargo, cabe registrar, aquele Tribunal, com certa regularidade, tem aplicado tal princípio nos crimes de contrabando e descaminho, cuja pena varia de um a quatro anos . Pode-se incluir nessa lista o tráfico de entorpecentes (quantidade ínfima) , e outros como peculato, crimes contra a fauna. No caso, não existe uma relação quantitativo-numérica, mas a situação in concreto, a lesividade objetiva do bem protegido. Nessa linha, vale o registro específico: “2- Não se tipifica o crime previsto no art. 70 da Lei 4711/62, quando ausente potencialidade lesiva em transmissões de rádio comunitária de pouco alcance”.

No caso em estudo, a comparação dos watts dá a dimensão do problema, seria cabível a aplicação do princípio da insignificância, teoria que enfrenta resistência naquela R. Corte, cujo entendimento, in casu, quanto ao baixo potencial ofensivo ou intensidade de dano, refletiria apenas “na dosimetria penal” . Todavia, o entendimento da R. Corte suplica revisão no caso específico, visto não ser praxe dos laudos da Anatel a aferição de danos, nem comprovação de interferências. Como regra, transcreve a legislação. Destarte, o posicionamento da R. Corte se consolida em detrimento de postulados humanizados e cidadãos que prosperam: “3. É aplicável o princípio da insignificância quando a conduta dos acusados teve escassa nocividade à tutela jurisdicional e pequena relevância ao sistema jurídico”.

CONCLUSÕES
Do Império Romano, passando pela polícia inglesa do século XVII; da polícia russa e sua KGB; da polícia política da Ditadura Militar no Brasil até a ditadura do populismo Lulista, ficou evidenciado um quadro que se perpetua no tempo. A radiodifusão comunitária como vítima desse fenômeno, sofre a ação repressiva da Anatel e da Polícia Federal, cujos atos vem sendo ratificados, em parte, pelo Poder Judiciário. É flagrante a agressão ao legítimo exercício do fundamental direito à comunicação em sua dimensão binária, o de informar e ser informado.

Mas, em recente ação impetrada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, os membros do Ministério Público recorreram à obra A informação – analise de uma liberdade frustrada, de Jorge Xifra-Heras, escrita por R. A. Amaral Vieira. “O direito à livre expressão se esvazia na ausência de canais que lhe dêem vida; de nada vale o direito subjetivo à livre expressão ou à impressão livre, se as condições objetivas tornam o direito a editar um privilégio de minorias econômicas”.

Tudo decorre da forma de interpretação do ordenamento jurídico existente, um fator que tem sido decisivo na perpetuação do conflito. Parte dos vícios que concorrem para a cristalização do corrente dominante foi aqui apontada e síntese desses vícios passa a compor as conclusões desse artigo.

a) Em 1962 foi aprovado Código de Telecomunicações (4.117/62). Em 22/11/ 1969, o Brasil assinou e se comprometeu a cumprir o Pacto de São José da Costa Rica. Em 1988 veio a nova Constituição, inspirada em princípios de cidadania daquele tratado, o pacto foi ratificado em 6/11/1992. Consolidou-se o espírito democrático da nova Carta, no tocante à liberdade de expressão (Decreto 678/92). Em 1997 veio o novo Código de Telecomunicações (Lei 9.472/97) e, finalmente, em 19/02/1978, foi promulgada a Lei 9.612/98 que disciplinou de forma específica a radiodifusão.
b) As pequenas emissoras cumprem um papel social relevante que as grandes emissoras mesmo que quisessem não conseguiriam suprir. E, muito embora as alegadas interferências, tecnicamente possíveis, estão longe da visão catastrófica disseminada pelas grandes emissoras comerciais. Sem embargo, interferências são uma questão de ajuste, nada que o avanço tecnológico não possa corrigir.
c) O uso de espectro eletromagnético tem fundamento no Pacto de São José da Costa Rica de 1969, acordo internacional recepcionado pela Constituição de 1988 que transcreveu textos quase literais em seus dispositivos, no que tange à radiodifusão e liberdade de expressão. Ambos vedam edição de leis que lhes estabeleçam restrições. Com o espírito cidadão, qualquer interpretação contrária configura ilegalidade.
d) Materializando aquele espírito da Carta Magna, dois diplomas legais foram expedidos, um sobre telecomunicações (Lei 9472/97) e outro sobre radiodifusão (Lei 9612/98). Não se justifica aplicar a lei de telecomunicações sobre radiodifusão. Vale o princípio lex posterior derogat legi priori (norma posterior revoga anterior) e lex specialis derogat legi generali (norma especial revoga a geral).
e) Telecomunicação e radiodifusão são tratados de forma distinta na Constituição. A primeira tem características de bilateralidade, é onerosa e o destinatário ou usuário é específico. Já a radiodifusão tem destinatário difuso sem ônus e que não interage de forma direta com o difusor.
f) A Lei de Telecomunicação, dirigida a fenômeno distinto, prevê penas pesadas, o que macula o princípio da proporcionalidade das penas, o que reforça a tese da inaplicabilidade da Lei 9472/97 para a radiodifusão. O artigo 179 prescreve multa de R$ 50 milhões.
g) A radiodifusão comunitária, por ser fenômeno novo, do fim da década de 80, não está contemplada pela Lei 4711/61, antigo Código de Telecomunicações. Isso traz a questão para o campo da atipicidade e fere o princípio da legalidade. Por outro lado, o Direito Penal não admite analogia.
h) Interpretações forçadas e viciadas, para tentar adequação fato e norma, se esvaem diante do princípio da insignificância, diante do diminuto condão ofensivo dos poucos watts das mini-emissoras frente ao troar da imensa potência das grandes emissoras.
i) Em sendo a Constituição de espírito cidadão, não se entende que dela possa derivar norma inferior ou dela derivada, que contrarie sua essência. As reiteradas interpretações em contrário configuram vícios fatais e inaceitáveis, cuja eliminação muito contribuiria para uma aplicação mais justa da lei.
j) Diante do exposto, frente ao exagerado apego à forma, sob o argumento do interesse da União, ainda assim deixará sem resposta uma questão, sem qualquer ironia: da mesma forma que o Governo Federal não deve interferir na comunicação entre uma criança e um adulto em quartos diferentes através de uma babá eletrônica, faz sentido a reunião de uma Câmara Federal para decidir se uma longínqua comunidade dos sertões brasileiros deve ou não ter direito a uma pequena emissora?

Paira sobre o tema a desigualdade de tratamento, ao arrepio dos próprios postulados que formalmente inspiram nosso ordenamento jurídico, em detrimento do exercício da liberdade de expressão, do direito à informação e de comunicar, do exercício da cidadania. E, se os contrapontos ora oferecidos não são suficientes para alterar essa realidade, é porque o assunto não reside necessariamente no campo do Direito, mas sim numa luta de classes, onde o opressor cria o direito e define os oprimidos que dele não desfrutarão. Mesmo que disso resulte num ataque à Constituição.
 
 

Armando Rodrigues Coelho Neto é Delegado de Polícia Federal e editor das revistas Impacto (Sindicato dos Delegados de Polícia Federal) e Indícios (Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal). Formou-se em Direito (Universidade Federal de Pernambuco - UFPE) e em Jornalismo (Universidade de São Paulo - USP). Concluiu a especialização em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo com o trabalho “Rádio Comunitária não é crime”.

 
 
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