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15/08/2006
Esse subsídio poderá suscitar no leitor um certo estranhamento, por parecer pretensioso, isto é, uma tarefa extremamente difícil. Por isso desejo de antemão esclarecê-lo. Não se trata aqui de apresentar uma análise exaustiva e sistemática, mas tão somente anunciar caminhos para possível crítica de determinadas tendências existentes na área de educação em saúde. Para tanto, recorrerei ao pensamento do Professor Dermeval Saviani, que, ao interpretar a questão da marginalidade relativa ao fenômeno da escolarização, apresenta o posicionamento das teorias educacionais diante dessa situação. Convém lembrar que se trata de uma abordagem mais esquemática apresentando apenas algumas tendências atuais e, embora muito importante, não leva em consideração a perspectiva história que norteia tais tendências. Pode-se dizer que, no que se refere à questão da marginalidade, as teorias educacionais podem ser classificadas em três grupos: teorias não-críticas, teorias crítico-reprodutivistas e teorias críticas (SAVIANI, 1984). A distinção entre esses grupos reside na forma de compreender as relações entre educação e sociedade.
As teorias não críticas, por alguns denominadas de concepções redentoras de educação ou de otimismo pedagógico, ou, ainda, de otimismo ingênuo, concebem a educação com grande margem de autonomia em relação à sociedade e, portanto, procuram entender a educação por ela mesma. A sociedade é vista como um todo harmonioso e que pode apresentar alguns "desvios" _ desvios estes que devem ser corrigidos pela educação. Assim é, que a marginalidade é percebida como um desses desvios. A escola, por exemplo, surge destro desta perspectiva para "redimir" os marginais, para equalizar as oportunidades sociais, enfim, para resolver os problemas da sociedade. A educação tem aqui um caráter supra-social, isto é, não está ligada a qualquer classe social específica, mas serve indistintamente a todas.
São três as Pedagogias ou Escolas que contemplam as teorias não-críticas: Pedagogia Tradicional; Pedagogia Nova e Pedagogia Tecnicista.
A seguir, explorarei, muito resumidamente, as características mais significativas de cada uma, para o meu propósito.
Pedagogia Tradicional
No início do século passado, surgem os sistemas nacionais de ensino. Esses sistemas foram originalmente constituídos sob o princípio orientador: A Educação é direito de todos e dever do Estado. Assumindo o poder com a Revolução Francesa e intencionando nele se consolidar, a burguesia defende a constituição de uma sociedade democrática, ou seja, a democracia burguesa. Para ascender a um tipo de sociedade fundada nos princípios da igualdade, fraternidade e liberdade entre os indivíduos, era imprescindível vencer a barreira da ignorância. Somente assim seria possível transformar os súditos em cidadãos, isto é, em indivíduos livres porque esclarecidos. Tal tarefa só poderia ser realizada através da escola.
Nesta perspectiva, a marginalidade é identificada com a ignorância, ou na nova sociedade burguesa, o marginal é o ignorante. A escola é vista, portanto, da marginalidade . Dentro deste quadro, o papel da escola é o de transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade. A escola tem a intenção de conduzir o aluno até o contato com as grandes realizações da humanidade - aquisições plenamente elaborados. Esta escola realça os modelos em todos os campos do saber. O professor é o responsável pela transmissão dos conteúdos, é o centro do processo educativo. Deve, portanto, ter domínio dos conteúdos fundamentais e ser bem preparado para a transmissão do acervo cultural.
A experiência relevante que o aluno deve vivenciar é a de ter acesso democrático às informações, conhecimento e idéias, podendo, assim, conhecer o mundo físico e social. Enfatiza-se a disciplina intelectual, para o que se necessita de atenção, concentração, silêncio e esforço. A escola é o lugar por excelência onde se raciocina e o ambiente deve ser convenientemente austero para o aluno não se dispersar.
O professor tem poder decisório quanto à metodologia, conteúdo e avaliação. Procura a retenção das informações e conceitos através da repetição de exercícios sistemáticos (tarefas). Há a tendência de tratar a todos os alunos igualmente: todos deverão seguir o mesmo ritmo de trabalho, estudar os mesmos livros-texto, no mesmo material didático e adquirir os mesmos conhecimentos. Aqui, a concepção de educação é caracterizada como produto, já que estão pré-estabelecidos os modelos a serem alcançados. Não se destaca, portanto, o processo. São privilegiadas as atividades intelectuais.
A transferência da aprendizagem depende do treino, sendo imprescindível a retenção, a memorização, para que o aluno responda a situações novas de forma semelhante às situações anteriores. Em resumo, pode-se afirmar que nesta pedagogia há uma redução do processo educativo a, exclusivamente, uma de suas dimensões: a dimensão do saber.
Retomemos as duas idéias principais desta pedagogia: a vocação de oportunizar a todos o acesso à escola, no sentido de transformar marginais (sinônimo de ignorantes) em cidadãos e a total autonomia da educação em relação à sociedade.
Pedagogia Nova
Já na primeira metade deste século, educadores apoiados nessas idéias se põem veentemente a criticar essa Escola, a partir denominada Tradicional, considerando-a totalmente inadequada. Segundo esses críticos, a Pedagogia Tradicional não alcançou sua principal, ou melhor, nem todos os indivíduos tiveram acesso a ela, nem todos os que nela ingressaram foram bem sucedidos. E, além disso, nem todos os que foram bem sucedidos nessa escola se ajustaram à sociedade que se queria consolidar.
Dito de outro modo, esta escola falhou! Há que se mudá-la! Surge um grande movimento, cuja expressão maior foi o Escolanovismo ou Escola Nova. Trata-se, em resumo, de mudar toda a lógica da Pedagogia Tradicional. Inicialmente, o escolanovismo é implantado no âmbito de escolas experimentais.
Segundo a Pedagogia Nova, o marginalizado deixa de ser visto como o ignorante. Passa a ser o rejeitado. Alguém, segundo esta Escola, se integra socialmente não quando é ilustrado, esclarecido, mas quando se sente aceito pelo grupo.
É interessante registrar que as primeiras manifestações desse movimento se deram com crianças excepcionais e deficientes mentais, fora da instituição escolar. Lembremo-nos, por exemplo, da pediatra Maria Montessori e do médico Ovíde Decroly. Ambos preocupados com a individualização do ensino, com a estimulação às atividades livres concentradas, baseados no princípio da auto-educação. A partir dessas experiências, generalizam-se os procedimentos pedagógicos para todo o sistema educacional.
Quero salientar, também, a grande influência da Psicologia para a Escola Nova, através do uso intensivo de testes de inteligência, de personalidade, dentre outros. Por fim, não podemos nos esquecer de que princípios foram transportados quase que mecanicamente da chamada Terapia Centrada no Cliente, de Rogers , para a sala de aula. Daqui decorre o princípio norteador da Escola Nova: a não-diretividade e seus correlatos, como congruência, aceitação incondicional do aluno, respeito.
A educação atingirá seu objetivo - corrigir o desvio da marginalidade -, se incutir nos alunos o sentido de aceitação dos demais e pelos demais. Contribui assim para construir uma sociedade em que seus membros se aceitem e se respeitem em suas diferenças. Esta nova forma de entender a Educação, como já dissemos, leva necessariamente a uma mudança, por contraposição à Pedagogia Tradicional, nos elementos constitutivos da prática pedagógica. Assim é que o professor deixa de ser o centro do processo, dando o lugar ao aluno. O professor deixa de ser o transmissor dos conteúdos, passando a facilitador da aprendizagem. Os conteúdos programáticos passam a ser selecionados a partir dos interesses dos alunos. As técnicas pedagógicas da exposição, marca principal da Pedagogia Tradicional, cedem lugar aos trabalhos em grupo, dinâmicas de grupo, pesquisa, jogos de criatividade. A avaliação deixa de valorizar os aspectos cognitivos, com ênfase na memorização, passando a valorizar os aspectos afetivos (atitudes) com ênfase em auto-avaliação.
Desloca-se o eixo do ato pedagógico do intelecto para o sentimento, do aspecto lógico para o psicológico. Em resumo, as palavras se ordem da Pedagogia Tradicional são alteradas. Desta forma, esforço, disciplina, diretividade, quantidade passam a interesse, espontaneidade, não-diretividade, qualidade. Há, também, em decorrência desse ideário, uma mudança no "clima" da escola: de austero para afetivo, alegre, ruidoso, colorido. reduz-se assim, o processo de ensino a uma de suas dimensões - a dimensão do saber ser.
É preciso assinalar que este tipo de Escola, devido ao afrouxamento de disciplina e à negligência com a transmissão de conteúdos, além de não cumprir o objetivo a que se propunha - tornar aceitos os indivíduos rejeitados - prejudicou os alunos das camadas populares que têm nela o único canal de acesso ao conhecimento sistematizado. Aceitou-se o problema da marginalidade.
Pedagogia Tecnicista
Diante da constatação de que também a Escola Nova não cumpre seu objetivo, há que - mais uma vez - mudar-se a escola! Agora, não se percebe o marginalizado como o não informado (Pedagogia Tradicional), tampouco como o rejeitado, o não aceito (Escola Nova), contudo, marginalizado passa a ser sinônimo de incompetente, ineficiente, de improdutivo. Temos, como conseqüência, que as principais premissas desta Pedagogia passam a ser a eficiência, a racionalidade e a produtividade. O centro de ensino não é mais o professor, nem mais o aluno, mas as técnicas. Daí o nome desta Pedagogia: tecnicismo ou escola tecnicista. partindo dela, reorganiza-se o processo educativo no sentido de torná-lo objetivo e operacional. As escolas passam a burocratizar-se. Exige-se dos professores a operacionalização dos objetivos, como instrumento para medir comportamentos observáveis, válidos porque mensuráveis, porque controláveis. Dissemina-se o uso da instrução programada (auto-ensino), das máquinas de ensinar, testes de múltipla-escola, do tele-ensino e múltiplos recursos audio-visuais.
A Tecnologia Educacional, por coerência, é a grande inspiradora da Pedagogia Tecnicista. Esta pedagogia é sustentada por um dos paradigmas da Psicologia: o behaviorismo ou comportamentalismo. Os behavioristas ou comportamentalistas valorizam a experiência ou a experiência planejada como a base do conhecimento. Skinner pode ser considerado como um dos principais representantes da "análise experimental do comportamento humano deveria, por natureza, retirar as funções anteriores atribuídas ao homem autônomo transferi-las, uma a uma, ao ambiente controlador." (SKINNER 1973, p. 155) O tecnicismo é também suportado pela informática, cibernética e Engenharia Comportamental.
Correndo o risco de redundar, assinalo que, mais uma vez, o papel do professor é alterado: de transmissor de conteúdos e centro do processo na Pedagogia Tradicional, passando a facilitador da aprendizagem do aluno, que é centro, na Escola Nova; agora, no tecnicismo, é um arranjador das contingências de ensino. Há muitos incentivos e recompensas às atividades desenvolvidas pelos alunos, levando a uma grande competitividade entre eles. Reduz-se aqui o processo educativo a uma de suas dimensões: dimensão do saber fazer.
O tecniscismo, tendo rompido com a Escola Nova, acentua mais ainda o caos no sistema de ensino.
Claro, esta Escola também não conseguiu atingir sua grande meta: transformar os marginalizados em indivíduos competentes, produtivos, para atuar no mercado. A simples razão para esse fracasso é a inexperiência de articulação direta entre a escola e o processo produtivo.
Teorias-Crítico-reprodutivistas
No final da década de 70, surge no cenário educacional um corpo de teorias, aqui denominadas crítico-repodutivistas, mas também conhecidas como pessimismo pedagógico ou pessimismo ingênuo na Educação. Têm como baliza a percepção de que a Educação, ao contrário do que pensam as teorias não-críticas, sempre reproduz o sistema social onde se insere, sempre reproduz as desigualdades sociais. Seu nome, crítico-reprodutivo, advém do fato de, apesar de perceberem a determinação social da educação (críticas), consideram que esta mantém com a sociedade uma relação de dependência total (reprodutivistas).
Para os crítico-reprodutivistas, a Educação legitima a marginalização, reproduzindo a marginalidade social através da produção da marginalidade cultural, advindo daí o caráter seletivo da escola. Não é, portanto, possível compreender a Educação, senão a partir dos seus determinantes sociais.
Diferentemente das teorias não-críticas, as crítico-reprodutivistas não possuem uma proposta pedagógica; limitam-se às análises profundas da determinação social da Educação. Por isso, irei apenas listá-las, bem como a seus representantes: Teoria do Sistema de ensino enquanto violência simbólica, de Bourdieu e Passeron , Teoria da escola enquanto aparelho ideológico do Estado, de Althusser , e teoria da escola dualista, de C. Baudelot e R. Establet.
Como vimos neste breve recorte histórico, a questão da marginalidade permanece.
Teoria Crítica
A partir do início dos anos 80, alguns educadores têm-se colocado como questão: é possível uma visão crítica da Educação, ou seja, perceber os determinantes sociais da Educação e, ao mesmo tempo, entendê-la como instrumento capaz de superar o problema da marginalidade?
No sentido de dar a esta questão, uma nova perspectiva vem sendo gestada: a teoria crítico-social dos conteúdos. Admite ser a Educação determinada pela sociedade onde está situada, mas admite também que as instituições sociais apresentam uma natureza contraditória, donde a possibilidade de mudanças. Assim é que a Educação pode sim, reproduzir as injustiças, mas tem, também, o poder de provocar mudanças.
Dentro desta perspectiva teórica, estamos num movimento que busca resgatar os aspectos positivos das teorias firmadas no cotidiano escolar (as teorias não-críticas), articulando-os na direção de uma transformação social. Assim, resgata-se da Pedagogia Tradicional a importância da dimensão do saber; da Escola Nova, a dimensão do saber ser, e da Pedagogia Tecnicista, a dimensão do saber fazer. Em essência, sua proposta pedagógica traduz-se pelos seguintes princípios:
- o caráter do processo educativo essencialmente reflexivo, implica constante ato desvelamento da realidade. Funda-se na criatividade, estimula a reflexão e ação dos alunos sobre a realidade;
- a relação professor/aluno é democrática, baseada no diálogo. Ao professor cabe o exercício da autoridade competente. A teoria dialógica da ação afirma a autoridade e a liberdade. Não há liberdade sem autoridade;
- o ensino parte das percepções e experiências do aluno, considerando-o como sujeito situado num determinado contexto social;
- a educação deve buscar ampliar a capacidade do aluno, considerando-o como sujeito situado num determinado contexto social;
- a educação deve buscar ampliar a capacidade do aluno para detectar problemas reais e propor-lhes soluções originais e criativas. Objetiva, também, desenvolver a capacidade do aluno de fazer perguntas relevantes em qualquer situação e desenvolver habilidades intelectuais, como a observação, análise, avaliação, compreensão e generalização. Para tanto, estimula a curiosidade e a atitude investigadora do aluno;
- o conteúdo parte da situação presente, concreta. Valoriza-se o ensino competente e crítico de conteúdos como meio para instrumentalizar os alunos para uma prática social transformadora.
A educação é entendida como processo de criação e recriação de conhecimentos. Professor e aluno são considerados sujeitos do processo ensino-aprendizagem. A apropriação do conhecimento é também um processo que demanda trabalho e disciplina. valoriza-se a problematização, o que implica uma análise crítica sobre a realidade-problema, desvelando-a. É ir além das aparências e entender o real significado dos fatos.
Cito como principais representantes desta tendência pedagógica no Brasil, Professor Paulo Freire (FREIRE, 1982), Professor Dermeval Saviani (SAVIANI, 1984, 1991), Professor José Carlos Libâneo (LIBÂNEO 1983, 1989) e Professor Moacir Gadotti (GADOTTI, 1983).
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