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  O fato consumado da TV Digital
Gustavo Gindre
  20/04/2006

O memorando assinado com o Japão não sacramenta a decisão do Brasil. É preciso esclarecer a farsa montada acerca da política industrial e barrar o início dos testes. A criação criminosa de um fato consumado tende a esconder a demanda por uma nova lei para regular o rádio e a TV no país, mantendo o oligopólio da mídia.

Gustavo Gindre

Os governos brasileiro e japonês assinaram um Memorando de Entendimento (MoU) que prevê a adoção do padrão de modulação japonês (ISDB) na TV digital brasileira. O que isso significa de verdade? Em primeiro lugar, cabe lembrar que o MoU não sacramenta a decisão, embora seja um passo importante neste sentido. Ainda há, portanto, espaço para que a sociedade civil continue reivindicando um outro rumo para a TV digital brasileira.

Mas, vamos apenas supor que o MoU termine desaguando em um acordo oficial. Isso não significa o fim da batalha por uma TV digital mais democrática. E é preciso ter isso bem claro para não deixar o jornalismo-propaganda da Rede Globo influenciar a pauta da sociedade civil. Até porque, diante do poder político das emissoras de TV e da pouca vontade do governo Lula em enfrentar o oligopólio privado das comunicações, a sociedade civil tem se saído muito bem. 

O ministro das Comunicações, Hélio Costa, desde o final do ano passado tem dito que o assunto estava encerrado a favor do padrão japonês (o preferido da Globo). Mas, pressionado por todos os lados, o governo adiou duas vezes a data-limite para tomar a decisão e simplesmente ignorou o fim do último prazo (10 de março). Agora, teve que encenar a farsa de uma fábrica de semi-condutores para poder justificar sua escolha. Ou seja, a sociedade civil demonstrou força e não há porque recuar agora.

Em primeiro lugar, caberia questionar judicialmente o acordo firmado entre os dois países. Isso porque ele desrespeita o Decreto Presidencial 4.901/03, que criou o Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD). O Decreto fala em “estimular a pesquisa e o desenvolvimento e propiciar a expansão de tecnologias brasileiras” e a adoção de uma tecnologia estrangeira quando existe similar nacional (o Sorcer, desenvolvido pela PUC-RS) não apenas desestimula a produção de ciência e tecnologia brasileiras como compromete o esforço por uma política industrial autônoma e desenvolvimentista.

Neste mesmo Decreto pode-se ler que o Comitê Consultivo, formado por representantes da sociedade civil, “tem por finalidade propor as ações e as diretrizes fundamentais relativas ao SBTVD”. Ocorre que o Comitê Consultivo foi desfeito pelo governo sem que as atuais decisões tivessem sido discutidas por seus representantes. Logo, o Comitê viu-se impedido de propor “ações e diretrizes”.

Já que o próprio governo desrespeitou o Decreto Presidencial, cabe a sociedade civil recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Ministério Público Federal (MPF) para resguardar a devida legalidade.

Em segundo lugar, cabe à sociedade civil esclarecer a farsa que se está montando a respeito da política industrial brasileira. A escolha de um padrão estrangeiro implicará no pagamento de royalties pelas patentes das tecnologias empregadas. O governo também não esclareceu o que acontecerá com o parque industrial brasileiro de TVs e componentes, uma vez que apenas o Japão usa o ISDB em todo o planeta e aquele país não importa TVs. Pelo contrário, o Japão exporta equipamentos eletrônicos. Seremos, então, um importador cativo das tecnologias japonesas? Ou, no máximo, teremos algumas maquiladoras que farão a montagem dos kits importados?

Se o governo realmente deseja impulsionar o setor de semi-condutores no Brasil (e não no Japão), por que não apóia decididamente este tipo de pesquisa nas universidades? Por que o Brasil nem ao menos enriquece o silício que extrai (base dos semi-condutores)? Por que não apoiamos o setor de design de chips, que, cada vez mais, concentra o valor agregado da indústria de semi-condutores? Se é para ter uma fábrica de semi-condutores (chamadas de foundry), por que o governo não termina a foundry protótipo que ele próprio já possui no Rio Grande do Sul (Ceitec)?

Mesmo que venha a tal fábrica de semi-condutores (com a qual os japoneses não se comprometeram no MoU), isso não significa que haverá transferência de tecnologia. Mas, apenas, que seremos mercado cativo japonês.

E, ainda, é preciso que o governo esclareça o que pretende fazer com as tecnologias desenvolvidas no interior do SBTVD, com financiamento público. Depois de termos gastos cerca de R$ 30 milhões com pesquisas, vamos simplesmente desprezar os middlewares desenvolvidos pela PUC-Rio e UFPB? E também a modulação criada pela PUC-RS? E ainda uma série de outros avanços conseguidos por dezenas de universidades e centros de pesquisa? Tudo em nome da adoção de uma tecnologia importada?

O governo diz que o Brasil terá acento nos comitês que dirigem o ISDB. Qual o poder de fato que o Brasil terá nestes comitês? Como poderá influenciar o futuro desenvolvimento da tecnologia japonesa de forma a que esta possa beneficiar também o Brasil?

Nada disso consta no MoU e nem tem recebido respostas satisfatórias das autoridades envolvidas com a negociação. Portanto, mais uma vez, cabe à sociedade civil brasileira o papel de esclarecer a opinião pública, de cobrar estas definições por parte do governo e de denunciar, inclusive na Justiça, eventuais irregularidades.

Modelo de serviços

Um ponto deve ficar bem claro: a adoção do ISDB, ainda que seja trágica para o desenvolvimento de ciência e tecnologia nacionais, não determina absolutamente nada do que será o modelo de serviços da futura TV digital brasileira. Não há nenhum impedimento no ISDB para que se faça multiprogramação, impedindo que as emissoras atuais fiquem com todo o espectro de VHF e UHF para seu bel prazer. Também não há impedimento para que se dote a TV digital de serviços interativos que até então estão confinados à Internet, como educação interativa à distância, tele-medicina, e-mail, e-bank, etc.

Por isso, é fundamental que a sociedade civil não permita que a suposta adoção do ISDB seja considerada o começo da TV digital brasileira. As emissoras não podem começar seus testes. Isso porque a legislação brasileira não contempla os novos serviços que vão surgir com a TV digital. O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), que regulamenta o rádio e a TV no Brasil, é de 1962 e está absolutamente incapaz de dar conta da digitalização da TV e do rádio.

Para que as emissoras comecem seus testes em digital elas terão que “ganhar” do governo um novo canal de TV, uma vez que durante muitos anos ainda manterão sua transmissão analógica nos canais atuais. Mas, a legislação atual prevê que novas transmissões precisam de novas outorgas. O governo não pode simplesmente dar novos canais para quem já tem os antigos. A legislação atual também proíbe que um mesmo grupo tenha mais de uma outorga por região. Assim, as atuais emissoras não poderiam (mesmo com a devida licitação) ganhar novas outorgas. Também não há amparo legal para que a TV aberta transmita os dados que são necessários para a criação de serviços interativos. TV, em 1962, era apenas a transmissão de sons e imagens.

O começo dos testes significa a criação criminosa de um fato consumado que tende a esconder que a introdução da TV digital no Brasil demanda uma nova lei para regular o rádio e a TV. E visa, principalmente, manter o status quo do oligopólio de mídia que controla as comunicações no Brasil.

Ocorre, contudo, que nada disso é garantido com a “simples” escolha do ISDB como padrão de modulação da TV digital aberta no Brasil. O que não podemos permitir é que, se esta escolha vier a acontecer, o passo seguinte (o início das transmissões de teste) seja dado. Temos que garantir que qualquer transmissão em digital só seja feita após a aprovação de uma Lei Geral das Comunicações.

A principal medida a ser tomada agora é debater com a sociedade o que realmente está envolvido na questão da TV digital. É denunciar à Justiça caso o governo venha a escolher oficialmente o ISDB como padrão de modulação da TV digital brasileira. É impedir qualquer tentativa de criar fatos consumados. A escolha do ISDB não pode dar a partida nas transmissões de teste. Temos que ter uma lei, votada pelos representantes do povo, que diga o que pode e o que não pode ser feito nesta nova mídia que agora se inaugura. Estamos, portanto, longe do fim desta guerra. Com ou sem ISDB.


Gustavo Gindre é coordenador-executivo do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura - Indecs e membro do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 
 
 
   
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