28/02/2005
A seguir, artigo de Aquiles Rique Reis acerca do assassinato da Irmã Dorothy. Aquiles é músico, integrante do grupo MPB4 e autor do livro "O gogó de Aquiles", memórias sobre os bastidores da música popular brasileira. Tem uma coluna semanal no jornal Meio Norte, de Teresina, no Jornal da Cidade, de Poços de Caldas, e na publicação Brazilian Voice, voltada para a comunidade brasileira residente na costa leste dos EUA.
Pátria-violenta-poesia
"A irmã Dorothy não será sepultada, mas plantada". Estas palavras, veiculadas no Jornal Nacional da TV Globo no dia do assassinato da freira norte-americana, foram pronunciadas durante seu velório por uma outra missionária.
A frase é comovente e mais acentua a indignação e realça o sentimento de esperança de que nada foi em vão. Só que a violência, assim como a miséria, não respeita sentimentos, muito menos a dor. Nem tampouco se compadece de lágrimas derramadas por quem se habituou secularmente a sempre perder. Gente que nunca se cansa de lutar e de morrer por uma causa que o "Brasil-poderoso" tratou de decretar irremediavelmente perdida. Assim se continua a escrever a pátria-violenta-poesia que canta à morte, louvando a vida.
Mais recentemente, o Estadão publicou a reportagem de Vannildo Mendes, seu enviado especial a Anapu (PA), na qual ele revela trechos do diálogo que, momentos antes de ser assassinada a tiros, segundo uma testemunha, a irmã Dorothy teria mantido com os dois homens contratados para executá-la.
A conversa (quem chamou minha atenção para ela foi José Nêumanne, poeta, jornalista e escritor, autor do recém-lançado e imperdível O silêncio do delator, ed. A Girafa) parece coisa saída da cabeça de um romancista fértil em imagens que visam comover seu leitor. Não parece real. Não poderia ser real, no entanto é a sórdida verdade:
Dorothy, vendo que sua morte é iminente, encara Fogoió e, numa tentativa desesperada, tenta dissuadi-lo de matá-la: "Meu filho, vá retirar o capim da roça porque as sementes já começaram a brotar. Vá cuidar de seus filhos, esqueça o mal", teria dito ela. Fogoió desdenha: "É mesmo? Rá-rá!" E a testemunha segue relatando a cena: "Como se quisesse ganhar tempo, a irmã encostou o corpo e o cotovelo no braço com o qual Fogoió fazia sinal de puxar a arma". E a freira continua: "Meu filho, isso não vale a pena. Eu sou uma velha indefesa. Você vai se arrepender. Não faça isso. Vá cuidar da sua família. Siga o caminho de Deus". Sorrindo, Fogoió se afasta dela, buscando distância para abrir fogo. Neste momento, Eduardo se mostra arrependido e, temeroso, sugere que Fogoió a deixe ir: "Vamos embora, cara. Deixa isso pra lá". Numa tentativa derradeira, Dorothy abre sua Bíblia e lê para o matador um trecho que a testemunha não consegue se lembrar qual. É quando Fogoió dá alguns passos para trás, aponta sua arma de cano longo para a cabeça da missionária e atira. Dorothy balança e cai. Morta. A testemunha foge para o mato.
Os personagens dessa trama não são fruto de nenhuma literatura com ingredientes habilmente utilizados para produzir um campeão de vendagens, ao contrário. Dorothy Stang, missionária estrangeira que se dedica aos miseráveis de uma região entregue à própria sorte nos cafundós de um país de terceiro mundo; Rayfran das Neves Sales, o Fogoió, pistoleiro a soldo dos "coronéis" que defendem à bala seus negócios; Uilquelano de Souza Pinto, vulgo Eduardo, também um matador de aluguel, e uma outra missionária perplexa, quase anônima, que junta palavras como se compusesse um poema à vida idealizada diante da morte irremediável (voltada para o bem como Dorothy, apesar de todos os perigos que correm os que fazem da Justiça seu prumo), são personagens exemplares. São carne, sangue e osso de um Brasil que o Brasil teima em não tomar o conhecimento devido. Tudo ambientado lá no interiorzão de um Brasil ainda mais torto e desprovido dos mais comezinhos resquícios de civilidade, onde a História é escrita à bala, a ferro, a fogo e às custas da destruição da vida, patrimônio da natureza como o mogno da Amazônia.
A Polícia Federal garante ter solucionado o crime. Agora é julgar e exemplarmente condenar seus autores, até que outro e outro e mais outros crimes como esse aconteçam para encher-nos de ainda mais raiva e vergonha, numa cansativa, previsível e macabra repetição. |