22/03/2004
Num raio de aproximadamente
seis quilômetros na capital paulista - da Penha à Frequesia do Ó e do
Ipiranga à Barra Funda - vivem cerca de 400 mil latino americanos, que
migraram da Bolívia, Peru, Paraguai e Chile nos últimos anos em busca de
trabalho e melhores condições de vida. Estima-se que mais da metade deles ainda
seja clandestina, ou seja, não possui permissão para residir legalmente no
Brasil. Uma parcela da população maior que muitas cidades do interior paulista e
que praticamente inexiste na grande mídia. Há um ano e quatro meses,
12 bolivianos se uniram para fundar uma rádio comunitária, a Latina Sat, e
abastecer essa população com notícias e serviços que não encontravam em lugar
algum. O transmissor, de baixa potência, não atingia tamanha quantidade de
imigrantes, mas ainda assim era a única fonte de informação para a grande
maioria dos latino americanos que vivem e trabalham em São Paulo. Apesar disso,
a rádio é considerada ilegal por não ter a permissão de funcionamento do
Ministério das Comunicações.
Foi alegando esse fato que dois agentes da Agência
Nacional de Telecomunicações (ANATEL) invadiram o prédio onde ficava a antena da
emissora, na rua Celso Garcia, Zona Leste, e lacraram seu transmissor, na
quarta-feira passada, dia 17. “Eles estavam funcionando sem autorização. Agora
devem mandar uma carta explicando as razões de a rádio usar ilegalmente o dial
de São Paulo”, disse um dos agentes.
Recolocar a emissora no ar promete não ser tarefa
das mais simples – sob ameaça de cadeia para quem o fizer. Mas o uso “ilegal” do
dial paulistano é facilmente justificável. Primeiro pela função social que
ela cumpre e, segundo, pela dificuldade de se legalizar uma rádio comunitária
atualmente em São Paulo.
Diversidade na
programação
Com programação transmitida em castelhano e também
em quéchua e aymará (idiomas falados nos pequenos municípios dos altiplanos da
Bolívia e do Peru, de onde vem a maioria dos imigrantes), a rádio leva ao ar
programas sobre saúde, cultura, educação e lazer. “Temos ainda o noticiário
sobre os nossos países e prestação de serviços à comunidade”, diz Franklin
Castro, locutor da rádio que, entre idas e vindas está há 15 anos no Brasil.
Ele se refere, por exemplo, à possibilidade de os
imigrantes reencontrarem seus familiares. “A primeira coisa que eles fazem ao
chegar é procurar a rádio para dizer que estão no Brasil. Daí sim conseguem
reencontrar os parentes”, completa o boliviano Francisco Rondo, também locutor.
Estevan Cavallero, diretor da Associação de Residentes Bolivianos, lembra de
outro serviço importante: “Há pouco tempo encontrei uns documentos de
permanência no Brasil de uma senhora boliviana jogados no chão. Imediatamente
liguei para a rádio. Na hora a rádio levou a informação ao ar e no dia
seguinte a senhora apareceu chorando e contando que tinha sido assaltada.”
Edgar Gandarillas, também locutor, veio para o
Brasil há quatro anos com a mulher e aqui tiveram dois filhos. Apesar das
dificuldades, não quer voltar tão cedo a La Paz, Bolívia, onde vivia. Nunca
havia trabalhado com rádio na Bolívia, mas aqui acabou aderindo à causa quando
percebeu o papel da Latina Sat entre a população latina imigrada. “É a principal
fonte de informação de nossa comunidade. Eu e os outros diretores que arcamos
com os gastos, não temos ajuda de ninguém”, diz.
Comunicação a Serviço da Saúde
Jorge Heruvia, diretor da Associacion Gastronômica
Cantuta, lembra que “80% dos bolivianos trabalham em condições desumanas, em
ambientes fechados, e a única fonte de informação que eles têm é a rádio. Muitas
vezes eles nem saem às ruas, mas a rádio entra nas oficinas de costura.” Padre
Roque Patussi, da Pastoral do Migrante, completa explicando que muitos deles
trabalham e dormem no mesmo local e são submetidos a um regime de trabalho de 14
a 16 horas, na maioria das vezes, em ambientes inadequados e com pouca
ventilação.
Essa é a combinação ideal para o surgimento de
graves doenças, sendo a mais comum a tuberculose. Portanto os programas de saúde
têm recebido destaque na programação da rádio. “Usamos o programa Plantão Saúde,
da OBORÉ, e aprofundamos nas questões que nosso pessoal tem mais dificuldade”,
diz Gandarillas.
O principal desafio, entretanto, é dizer à
população que eles podem, sim, usar o sistema de saúde, ainda que não estejam
regularizados no Brasil. Normalmente não usam, pois têm medo de serem
entregues à Polícia Federal.
Após o fechamento da rádio, Denise Condeixa,
gerente de comunicação e educação da Vigilância e Saúde da Secretaria Municipal
de Saúde, participou de um encontro com os responsáveis pela rádio na sede da
OBORÉ, no último dia 18, quinta-feira. Para ela, “é necessário um trabalho de
informação para reeducação dos latinos que vivem na capital para que
procurem o sistema de saúde. Não importa que sejam clandestinos, não serão
entregues à Polícia Federal. Se mora em São Paulo, tem direito ao serviço de
saúde. E a rádio nesse sentido é fundamental.”
Sua afirmação vai na mesma direção da intervenção
do Secretário Municipal de Saúde, Gonzalo Vecina, no Seminário “Comunicação a
Serviço da Saúde”, que reuniu 80 entidades e 200 pessoas no dia 13 de março na
Câmara Municipal de São Paulo. "A expansão das rádios comunitárias é muito
importante para suprir parte da demanda de veicular a mensagem da saúde.
Enquanto a grande mídia é muito cara para isso, as rádios são um instrumento
barato e democrático. No caso da Latina Sat, o rádio serviria para ajudar a
combater a tuberculose, que é um grande problema para esta população”.
Luta pelo canal
Na mesma situação da Latina Sat estão todas as
outras emissoras comunitárias da capital paulista. Como não existe um canal no
dial disponível para essas rádios, elas não têm como se legalizar
perante o Ministério das Comunicações. Interessada em regularizar sua situação,
a emissora dos latinos acompanha desde o início o movimento “Cadê canal para a
Capital?”.
Ele começou no dia 23 de setembro do ano passado,
com um encontro no Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São
Paulo. A resposta da Anatel veio pouco mais de um mês depois, no dia 05 de
novembro, numa segunda rodada do evento, convocada pela Comissão de
Administração Pública da Câmara Municipal. O gerente geral de Planejamento e
Regulação da Agência, Yapir Marotta, assegurou que até abril as emissoras
comunitárias teriam um canal específico para operar: o 198 ou o 199 seriam
liberados para cerca de 700 rádios que, tendo toda a documentação restante em
mãos, poderiam ser regularizadas. Como ainda não houve a liberação, a Anatel foi
novamente cobrada durante o seminário “Comunicação a Serviço da Saúde”. Mas as
emissoras continuam sem resposta. Na tentativa de voltar a operar,
a Latina Sat conta agora com o apoio da Banca Jurídica de Apoio às Rádios
Comunitárias, iniciativa do Escritório Modelo “D. Paulo Evaristo Arns”, da
Faculdade de Direito da PUC . Trata-se de um grupo de estudantes de direito,
advogados e professores que resolveram se unir para assessorar juridicamente
rádios comunitárias. Auxiliar, sobretudo, aqueles que tiveram seus equipamentos
apreendidos ou sua rádio fechada.
Para entrar em contato, escreva para obore@obore.com.
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