22/08/2003
Quase 20 países estiveram
presentes no seminário Agricultura Familiar e Negociações Internacionais,
realizado nos dias 20, 21 e 22 de agosto, no Palácio do Itamaraty, em Brasília.
O seminário foi promovido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério
de Relações Exteriores e Rede Brasileira de Integração dos Povos (Rebrip) como
uma preparação para a próxima grande rodada mundial de negócios: a reunião da
OMC (Organização Mundial do Comércio), em Cancún, no mês de setembro.
Oficialmente, o Governo Lula convidou ministros e ONGs para
debater "a situação da agricultura familiar nas mesas de negociação
internacional". Na prática, todos os países do hemisfério sul presentes ao
encontro sabem que esta é a grande oportunidade de inverter a ordem perversa do
mercado mundial. Duas principais teses permearam o debate: como
enfrentar as barreiras protecionistas de primeiro mundo e como aumentar a
cooperação comercial entre os países do sul.
Nesta cobertura, os principais trechos do
evento.
A guerra dos mundos será em
Cancún
Para os países em desenvolvimeno, o destino tem dia
e hora marcada: a próxima reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio), em
Cancún, no mês de setembro, quando, mais uma vez, ricos e pobres batem de
frente. De um lado, as barreiras protecionistas do primeiro mundo. De outro, a
tentativa desesperada do hemisfério sul em furar este mercado blindado por
subsídios na área agrícola. As barreiras impostas pela União
Européia e pelos Estados Unidos ao Brasil representam um pesado fardo de mais de
US$ 10 bilhões ao ano. Só no mercado de laranja, as taxas chegam a 56% para o
mercado norte-americano e 33% para o mercado europeu.
Abertura? Nem retórica. Há poucas semanas, em
Genebra, europeus e americanos definiram o discurso para Cancún: aos pobres,
brioche. Café, açúcar, cacau, laranja etc. seguem imersos em taxas e, de
preferência, longe dos ricos centros consumidores no primeiro mundo. Para o
sentido inverso, entretanto, UE e EUA pedem abertura total. É a receita perfeita
para manter o caos econômico mundial no rumo em que está: desumano, injusto,
assimétrico e, se depender deles, eterno.
Autoridades brasileiras atacam subsídios e
propõem alternativas
O ministro do Desenvolvimento Agrário do Governo
Brasileiro, Miguel Rosseto, é uma das mais altas vozes a atacar as barreiras
protecionistas impostas pelos países de primeiro mundo no comércio de produtos
agrícolas. Segundo ele, "esta imensa massa de 100 milhões de camponeses da
América Latina não pode estar ausente dos debates de Cancúm porque estes
encontros internacionais determinam as políticas agrícolas nacionais".
Rosseto diz que "no Brasil, nós vamos continuar
insistindo na liberdade de acesso aos mercados, combate aos subsídios dos países
centrais e preservação de nossa autonomia em produzir políticas internas para
este setor".
Como saída para a inflexibilidade da União Européia
e dos Estados Unidos, Rosseto propõe o fortalecimento dos laços econômicos entre
os países do hemisfério sul. "Estamos trabalhando a relação direta sul-sul.
Nossas atitudes sinalizam uma opção clara pelo fortalecimento destas relações.
Estão aqui quase todos os países da América do Sul, nós intensificamos o diálogo
com Índia, China; está aqui a África do Sul, enfim, as atitudes apontam neste
sentido".
Os tradicionalmente comedidos membros do Ministério
de Relações Exteriores referem-se ao descontentamento com as barreiras de forma
bem clara, o que evidencia a prioridade oficial do Governo Brasileiro em Cancún:
abrir espaço e baixar barreiras.
"Em 19 anos que trabalho nesta área, esta é a
primeira vez que se discute como as negociações internacionais podem influenciar
de forma benéfica à agricultura familiar ", diz Régis Arslanian, diretor do
Departamento de Negociações Internacionais do Ministério de Relações
Exteriores.
"Trabalhamos em um quadro negociador muito difícil,
onde os interesses e as barreiras são enormes e onde há grandes potências
subsdiadoras, como os EUA e a UE. Tenho que ter uma consciência muito grande da
importância da agricultura familiar para o meu país, para o meu
Brasil".
México, mas pode chamar de
quintal
Para Ivan Polanco, o México é um exemplo. Desde que
abriu indiscriminadamente suas barreiras, o campo entrou numa expiral decadente.
O representante da mexicana Anec (Associação Nacional de Empresas Comerciais de
Produtos do Campo) espera que este seja um aviso triste e precioso às nações que
derem ouvido ao canto da sereia, abrindo seus mercados aos
gigantes.
"Em 1985, entramos para a OMC (Organização Mundial
do Comércio). Em 1994, entramos para o Nafta, com EUA e Canadá. Deste dia até
hoje, todas as nossas balanças agrícolas foram negativas, com exceção de 1995",
conta o mexicano. "Em 1994, 20% de nossos grãos eram importados dos EUA. Hoje,
este número é de 40%". Mais que um triste relato, Polanco trouxe
recomendações aos presentes: os tratados devem reconhecer a assimetria entre os
países e os acordos devem respeitar o direito soberano de cada um determinar o
que produzir e o que importar.
Hoje, 97% do comércio agrícola mexicano com os EUA
não tem barreiras. Feijão, milho, leite em pó e açúcar são os únicos produtos
protegidos. Nas palavras de Victor Celaya Del Toro, subsecretário de
Desenvolvimento Rural do Governo do México, "enquanto os outros países vêem a
água passar, nós já a temos pelo pescoço". Para ser mais preciso: no pescoço de
pelo menos 25% da população mexicana, que vive hoje no campo.
Até turismo perdeu com êxodo rural na
Jamaica
No início, era o campo. Depois, a cidade. Agora, o
mundo. Os problemas causados pela invasão de produtos agrícolas norte-americanos
na Jamaica começaram pela roça e acabaram por afetar seriamente a indústria do
turismo. O ministro jamaicano da agricultura, Robert Cleork explica: "o frango
produzido nos EUA entra em nosso país sem nenhuma barreira, o nosso nunca teve
acesso ao mercado americano".
Tanta desigualdade jogou o agricutor deste país de
2,7 milhões de habitantes nos centros urbanos. A sequência da triste novela foi
o crescimento nos índices de criminalidade. O turismo, acredita o ministro,
sofreu uma redução dramática com o passar dos anos.
De 0% a 60% do mercado em dois anos. A
Monsanto ensina
Em 1997, a Monsanto não tinha nada. Dois anos
depois, em 99, a gigante multinacional do setor de sementes e transgênicos,
acumulou sozinha 60% do mercado de milho. Os dados são de Raquel de Souza,
pesquisadora do Deser (Departamento de Estudos Sócio Econômicos Rurais), sediado
em Curitiba, no Paraná. "Isso representa um risco enorme de descontrole dos
preços. Como negociar com alguém que detém mais da metade do
mercado?".
Do milho ao leite, a diferença é pouca. Segundo a
pesquisa de Raquel, entre 1996 e 2000, mais de 100 mil produtores de leite
deixaram o mercado em todo o Brasil. Eles foram empurrados para fora no início
dos anos noventa, período em que começam a operar no Brasil as primeira
indústrias de leite multinacionais. "O preço pago por litro de leite a estes
produtores caiu, em média, 6,4% a cada ano, todos os
anos". |