|
10/02/2014
Morreu na manhã de ontem (9), aos 72 anos, o jornalista e escritor Renato Pompeu, vítima de um ataque cardíaco.
Considerado um dos grandes nomes da imprensa brasileira, Renato trabalhou no Jornal da Tarde, do qual fez parte de sua renovação, na década de 1960; contribuiu no desenvolvimento da revista Veja; e na Folha de S.Paulo, fazendo parte da equipe responsável por sua reformulação, em 1970.
Além de exercer o jornalismo, que lhe rendeu um Prêmio Esso, Pompeu escreveu 22 obras, entre eles "Quatro-Olhos" (1976) e "Samba-Enredo" (1992) e a biografia "Canhoteiro, o Homem que Driblou a Glória" (2002).
O velório do jornalista será hoje (10), às 20h, no Cemitério do Araçá (Avenida Dr. Arnaldo, 666). O enterro nesta terça, às 9h, no Cemitério de São Pedro (Av. Francisco Falconi, 837 - Vila Alpina).
Abaixo, a reprodução da última publicação realizada por Renato Pompeu, em seu "Blog do Renatão", em 4 de fevereiro:
Reflexões sobre a teoria do futebol constante de “A Saída do Primeiro Tempo” - Renato Pompeu
Em meados de 1977 eu estava escrevendo um romance sobre o espectro da Associação Atlética Ponte Preta, que anda pelas noites de Campinas tocando a testa das pessoas e mudando seus pensamentos. Então fui encarregado, pela revista Veja, onde então eu trabalhava como editor-assistente, e que tinha uma orientação editorial muito diferente da atual, de escrever um artigo sobre o Corinthians, que na semana seguinte iria disputar, justamente contra a Ponte Preta, o título paulista que o Corinthians buscava havia 23 anos. O resultado, que ganhou naquele ano o Prêmio Abril de Jornalismo Esportivo, pode ser visto na coleção da Veja na Internet. Uma reflexão sobre o significado do futebol, o artigo tinha o título de “Uma arte feita pelo povo”. A partir desse artigo, em pouco tempo elaborei uma Teoria do Futebol. Eu queria publicar essa teoria na revista do Cebrap, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, uma das mais importantes publicações na área de ciências humanas e que era crítica do regime militar, mas uma amiga minha, Anna Maria Franco Brisola, me disse o seguinte: “Renato, veja bem, a sua é uma teoria polêmica; você não tem diploma universitário, e além disso esteve um ano e meio no hospício, vão dizer que é loucura ou coisa pior. Faça o seguinte: bota no meio desse romance que você está escrevendo, como teoria de um personagem, e vê o que acontece”. O que aconteceu é que a tese foi levada a sério por gente que entende ao mesmo tempo de teoria social e de futebol, o que na época era uma combinação rara, mas hoje já se está tornando mais comum. A teoria, em resumo, diz o seguinte: o futebol não é um esporte, é um espetáculo dramático. Distingue-se de outros espetáculos dramáticos, como o teatro, cinema e televisão, por duas razões: em primeiro lugar, por retratar, não um conflito entre personalidades, mas um conflito entre duas instituições que, no plano imediato, são os dois times de futebol. Em segundo lugar, por não ter um roteiro prévio conhecido de seus atores: os “atores”, os jogadores, vão criando o enredo, a trama e o desenlace conforme suas decisões de momento. Por retratar um conflito entre duas instituições, o futebol pode simbolizar qualquer tipo de conflito social. Assim, em Glasgow se enfrentam católicos e protestantes (Celtic vs. Rangers), em Roma esquerdistas e direitistas (Roma vs. Lazio), em São Paulo o povão e a oligarquia, ou um deles é a classe média imigrante ascendente (Corinthians vs. São Paulo, ou um deles vs. Palmeiras), ou o time representa os habitantes de uma cidade ou região (Napoli, Barcelona). Tudo isso, porém, não é específico do futebol. Outros esportes coletivos com bola têm essas mesmas características. O que distingue especificamente o futebol é o uso primordialmente do pé e a proibição do uso da mão. Ora, o futebol tal como o conhecemos surge exatamente durante a Revolução Industrial, em que pela primeira vez seres humanos trabalham horas a fio sem mover os pés, seja de pé diante de uma máquina, seja sentados a uma mesa. O futebol, assim, representa as classes trabalhadoras fora do local de trabalho. Por isso deu certo nos países em que as classes trabalhadoras existem fora do local de trabalho, mas não onde isso não ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos. A teoria, tal como foi publicada em 1978, precisa ser atualizada em pelo menos dois pontos. Um deles é quando se refere ao Japão. Na época, o futebol não tinha importância no Japão e isso era explicado pelo fato de que os trabalhadores se identificavam pelo fato de pertencerem a uma empresa que era como que uma família extensa. O emprego era vitalício e a relação do empregado com a empresa era pessoal, como se ele fosse um samurai. Ora, hoje podemos dizer que, com o fim do emprego vitalício, as classes trabalhadoras japonesas passaram a se identificar com o futebol. O outro ponto se refere às torcidas organizadas em geral e aos hooligans em particular. Na época que podemos considerar clássica do futebol, o torcedor se identificava, por meio da identificação com o time, com algo maior, seja uma camada social, seja uma região geográfica, etc. O futebol, em que se sucediam vitórias e derrotas, era como um processo educativo, em que se aprende que, na vida, se sucedem derrotas e vitórias, mas a instituição a que pertencemos continua existindo. Nas últimas décadas, no entanto, esse sentimento de pertencimento foi ficando cada vez mais fraco para milhões de pessoas. O time passou a não representar mais uma instituição extracampo a que a pessoa pertencia. Ela sente um pertencimento só ao tim4 de fevereiro de 2014Reflexões sobre minha teoria do futebol
Reflexões sobre a teoria do futebol constante de “A Saída do Primeiro Tempo” - Renato Pompeu - Em meados de 1977 eu estava escrevendo um romance sobre o espectro da Associação Atlética Ponte Preta, que anda pelas noites de Campinas tocando a testa das pessoas e mudando seus pensamentos. Então fui encarregado, pela revista Veja, onde então eu trabalhava como editor-assistente, e que tinha uma orientação editorial muito diferente da atual, de escrever um artigo sobre o Corinthians, que na semana seguinte iria disputar, justamente contra a Ponte Preta, o título paulista que o Corinthians buscava havia 23 anos. O resultado, que ganhou naquele ano o Prêmio Abril de Jornalismo Esportivo, pode ser visto na coleção da Veja na Internet. Uma reflexão sobre o significado do futebol, o artigo tinha o título de “Uma arte feita pelo povo”. A partir desse artigo, em pouco tempo elaborei uma Teoria do Futebol. Eu queria publicar essa teoria na revista do Cebrap, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, uma das mais importantes publicações na área de ciências humanas e que era crítica do regime militar, mas uma amiga minha, Anna Maria Franco Brisola, me disse o seguinte: “Renato, veja bem, a sua é uma teoria polêmica; você não tem diploma universitário, e além disso esteve um ano e meio no hospício, vão dizer que é loucura ou coisa pior. Faça o seguinte: bota no meio desse romance que você está escrevendo, como teoria de um personagem, e vê o que acontece”. O que aconteceu é que a tese foi levada a sério por gente que entende ao mesmo tempo de teoria social e de futebol, o que na época era uma combinação rara, mas hoje já se está tornando mais comum. A teoria, em resumo, diz o seguinte: o futebol não é um esporte, é um espetáculo dramático. Distingue-se de outros espetáculos dramáticos, como o teatro, cinema e televisão, por duas razões: em primeiro lugar, por retratar, não um conflito entre personalidades, mas um conflito entre duas instituições que, no plano imediato, são os dois times de futebol. Em segundo lugar, por não ter um roteiro prévio conhecido de seus atores: os “atores”, os jogadores, vão criando o enredo, a trama e o desenlace conforme suas decisões de momento. Por retratar um conflito entre duas instituições, o futebol pode simbolizar qualquer tipo de conflito social. Assim, em Glasgow se enfrentam católicos e protestantes (Celtic vs. Rangers), em Roma esquerdistas e direitistas (Roma vs. Lazio), em São Paulo o povão e a oligarquia, ou um deles é a classe média imigrante ascendente (Corinthians vs. São Paulo, ou um deles vs. Palmeiras), ou o time representa os habitantes de uma cidade ou região (Napoli, Barcelona). Tudo isso, porém, não é específico do futebol. Outros esportes coletivos com bola têm essas mesmas características. O que distingue especificamente o futebol é o uso primordialmente do pé e a proibição do uso da mão. Ora, o futebol tal como o conhecemos surge exatamente durante a Revolução Industrial, em que pela primeira vez seres humanos trabalham horas a fio sem mover os pés, seja de pé diante de uma máquina, seja sentados a uma mesa. O futebol, assim, representa as classes trabalhadoras fora do local de trabalho. Por isso deu certo nos países em que as classes trabalhadoras existem fora do local de trabalho, mas não onde isso não ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos. A teoria, tal como foi publicada em 1978, precisa ser atualizada em pelo menos dois pontos. Um deles é quando se refere ao Japão. Na época, o futebol não tinha importância no Japão e isso era explicado pelo fato de que os trabalhadores se identificavam pelo fato de pertencerem a uma empresa que era como que uma família extensa. O emprego era vitalício e a relação do empregado com a empresa era pessoal, como se ele fosse um samurai. Ora, hoje podemos dizer que, com o fim do emprego vitalício, as classes trabalhadoras japonesas passaram a se identificar com o futebol. O outro ponto se refere às torcidas organizadas em geral e aos hooligans em particular. Na época que podemos considerar clássica do futebol, o torcedor se identificava, por meio da identificação com o time, com algo maior, seja uma camada social, seja uma região geográfica, etc. O futebol, em que se sucediam vitórias e derrotas, era como um processo educativo, em que se aprende que, na vida, se sucedem derrotas e vitórias, mas a instituição a que pertencemos continua existindo. Nas últimas décadas, no entanto, esse sentimento de pertencimento foi ficando cada vez mais fraco para milhões de pessoas. O time passou a não representar mais uma instituição extracampo a que a pessoa pertencia. Ela sente um pertencimento só ao time. Quando o time perde, não há uma instituição extracampo que continua existindo apesar da derrota. Quando o time perde, é como se deixasse de existir qualquer vínculo. Daí a pessoa parte para a agressão. É claro que muitos outros fatores intervêm. Estudando o futebol, fica mais claro o que é tão intricado na observação das sociedades humanas: os modelos explicativos nunca esgotam o assunto e em cada caso concreto interferem muito mais fatores do que se enquadram nos modelos explicativose. Quando o time perde, não há uma instituição extracampo que continua existindo apesar da derrota. Quando o time perde, é como se deixasse de existir qualquer vínculo. Daí a pessoa parte para a agressão. É claro que muitos outros fatores intervêm. Estudando o futebol, fica mais claro o que é tão intricado na observação das sociedades humanas: os modelos explicativos nunca esgotam o assunto e em cada caso concreto interferem muito mais fatores do que se enquadram nos modelos explicativos4 de fevereiro de 2014Reflexões sobre minha teoria do futebol
Reflexões sobre a teoria do futebol constante de “A Saída do Primeiro Tempo” - Renato Pompeu - Em meados de 1977 eu estava escrevendo um romance sobre o espectro da Associação Atlética Ponte Preta, que anda pelas noites de Campinas tocando a testa das pessoas e mudando seus pensamentos. Então fui encarregado, pela revista Veja, onde então eu trabalhava como editor-assistente, e que tinha uma orientação editorial muito diferente da atual, de escrever um artigo sobre o Corinthians, que na semana seguinte iria disputar, justamente contra a Ponte Preta, o título paulista que o Corinthians buscava havia 23 anos. O resultado, que ganhou naquele ano o Prêmio Abril de Jornalismo Esportivo, pode ser visto na coleção da Veja na Internet. Uma reflexão sobre o significado do futebol, o artigo tinha o título de “Uma arte feita pelo povo”. A partir desse artigo, em pouco tempo elaborei uma Teoria do Futebol. Eu queria publicar essa teoria na revista do Cebrap, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, uma das mais importantes publicações na área de ciências humanas e que era crítica do regime militar, mas uma amiga minha, Anna Maria Franco Brisola, me disse o seguinte: “Renato, veja bem, a sua é uma teoria polêmica; você não tem diploma universitário, e além disso esteve um ano e meio no hospício, vão dizer que é loucura ou coisa pior. Faça o seguinte: bota no meio desse romance que você está escrevendo, como teoria de um personagem, e vê o que acontece”. O que aconteceu é que a tese foi levada a sério por gente que entende ao mesmo tempo de teoria social e de futebol, o que na época era uma combinação rara, mas hoje já se está tornando mais comum. A teoria, em resumo, diz o seguinte: o futebol não é um esporte, é um espetáculo dramático. Distingue-se de outros espetáculos dramáticos, como o teatro, cinema e televisão, por duas razões: em primeiro lugar, por retratar, não um conflito entre personalidades, mas um conflito entre duas instituições que, no plano imediato, são os dois times de futebol. Em segundo lugar, por não ter um roteiro prévio conhecido de seus atores: os “atores”, os jogadores, vão criando o enredo, a trama e o desenlace conforme suas decisões de momento. Por retratar um conflito entre duas instituições, o futebol pode simbolizar qualquer tipo de conflito social. Assim, em Glasgow se enfrentam católicos e protestantes (Celtic vs. Rangers), em Roma esquerdistas e direitistas (Roma vs. Lazio), em São Paulo o povão e a oligarquia, ou um deles é a classe média imigrante ascendente (Corinthians vs. São Paulo, ou um deles vs. Palmeiras), ou o time representa os habitantes de uma cidade ou região (Napoli, Barcelona). Tudo isso, porém, não é específico do futebol. Outros esportes coletivos com bola têm essas mesmas características. O que distingue especificamente o futebol é o uso primordialmente do pé e a proibição do uso da mão. Ora, o futebol tal como o conhecemos surge exatamente durante a Revolução Industrial, em que pela primeira vez seres humanos trabalham horas a fio sem mover os pés, seja de pé diante de uma máquina, seja sentados a uma mesa. O futebol, assim, representa as classes trabalhadoras fora do local de trabalho. Por isso deu certo nos países em que as classes trabalhadoras existem fora do local de trabalho, mas não onde isso não ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos. A teoria, tal como foi publicada em 1978, precisa ser atualizada em pelo menos dois pontos. Um deles é quando se refere ao Japão. Na época, o futebol não tinha importância no Japão e isso era explicado pelo fato de que os trabalhadores se identificavam pelo fato de pertencerem a uma empresa que era como que uma família extensa. O emprego era vitalício e a relação do empregado com a empresa era pessoal, como se ele fosse um samurai. Ora, hoje podemos dizer que, com o fim do emprego vitalício, as classes trabalhadoras japonesas passaram a se identificar com o futebol. O outro ponto se refere às torcidas organizadas em geral e aos hooligans em particular. Na época que podemos considerar clássica do futebol, o torcedor se identificava, por meio da identificação com o time, com algo maior, seja uma camada social, seja uma região geográfica, etc. O futebol, em que se sucediam vitórias e derrotas, era como um processo educativo, em que se aprende que, na vida, se sucedem derrotas e vitórias, mas a instituição a que pertencemos continua existindo. Nas últimas décadas, no entanto, esse sentimento de pertencimento foi ficando cada vez mais fraco para milhões de pessoas. O time passou a não representar mais uma instituição extracampo a que a pessoa pertencia. Ela sente um pertencimento só ao time. Quando o time perde, não há uma instituição extracampo que continua existindo apesar da derrota. Quando o time perde, é como se deixasse de existir qualquer vínculo. Daí a pessoa parte para a agressão. É claro que muitos outros fatores intervêm. Estudando o futebol, fica mais claro o que é tão intricado na observação das sociedades humanas: os modelos explicativos nunca esgotam o assunto e em cada caso concreto interferem muito mais fatores do que se enquadram nos modelos explicativos
|
|