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01/10/2008
Na noite do dia 16 de setembro de 2008, uma terça-feira fria em São Paulo, morreu o grande cronista, jornalista e amigo Lourenço Diaféria. Aos 75 anos, problemas cardíacos – que já o perseguiam há um ano – o levaram.
Sua carreira jornalística começou em 1956 na "Folha da Manhã". Começou como cronista em 1964. Permaneceu no periódico paulista até 1977, quando foi preso pelo regime militar pelo conteúdo de uma crônica (leia baixo) que foi considerada uma ofensa às Forças Armadas.
Escreveu também para o “Jornal da Tarde”, "Diário Popular" e "Diário do Grande ABC", além das rádios "Excelsior", "Gazeta", "Record", "Bandeirantes" e para a" TV Globo". Entre suas obras mais recentes estão "O imitador de gato" (2000) e "Brás - Sotaques e Desmemórias" (2002).
Diaféria, um amigo que já deixa saudade, foi conselheiro do Projeto Repórter do Futuro, da OBORÉ, tempo em que escreveu o prefácio do segundo caderno de jornalismo do curso “Os bambambãs da imprensa”.
Depoimento
“O lourenço me ensinou muita coisa. Nós trabalhamos junto na "Folha" e eu tive o privilégio de ser um dos caras que gozava da confiança dele. Eu fui consultado, inclusive, neste dia da crônica - que quando publicada o leva a prisão -, as palavras 'nós, o povo', fui eu que sugeri. E portanto, quando o Lourenço foi preso eu me senti na obrigação absoluta de solidariedade com ele. E organizamos com o pessoal todo da "Folha", um bloco de carnaval que saiu três vezes, chamado 'nóis sofre, mas nóis goza'. E quem olhasse de helicóptero lá de cima, via que a gente tinha descrito com o trajeto da nossa banda um ‘L’. O ‘L’ de Lourenço, o ‘L’ de liberdade. Das outras coisas todas que eu aprendi com o Lourenço, talvez a mais importante de todas seja a que ele me ensinou na frente das barracas de flores ali do cemitério do Araçá, numa noite em que ele estava muito inquieto. Ele falou: ‘tá vendo lá, lá em cima daquela torre da TV Tupi? [onde hoje é a MTV], se a gente subir ali naquela torre, a gente vê o bairro todo. E quem tá lá de cima, vê que tem um carro vindo em uma pista, uma moto na outra, e na outra um caminhão. Se você tá lá de cima, você já sabe o que vai acontecer, você já sabe que vai bater, antes de bater. Aquilo que é futuro para os outros você já sabe, já é presente pra você’. E foi ali que eu tive a lição do que significa política. Então foi o Lourenço, nesta noite, aflito com a Teoria da Relatividade, do Einstein, que me deu a grande lição da minha vida, que é a de fazer política, cuidar da cidade. E ninguém mais do que o Lourenço cuidou dessa cidade”, contou emocionado Sergio Gomes, diretor da OBORÉ, na homenagem do Jornal Brasil Atual. Ouça a íntegra aqui.
HERÓI. MORTO. NÓS.
(Crônica de 1º de setembro de 1977 e que levou Diaféria à prisão)
Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.
O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.
Que nome devo dar a esse homem?
Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.
Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas conseqüências.
O herói redime a humanidade à deriva.
Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.
Está morto.
Um belíssimo sargento morto.
E, todavia.
Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.
O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel - onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.
O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.
No instante em que o sargento - apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher - salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.
Esse sargento não é do grupo do cambalacho.
Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.
É apenas um homem que - como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem - não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.
O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.
Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.
É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.
Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos - mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.
Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.
E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis - tarde demais.
Lourenço Diaféria |
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