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  Relatos de viagem: o dia-a-dia dos estudantes do Repórter do Futuro
Christiane Peres
  29/07/2008

DIA 1: SEGUNDA-FEIRA (21) – MARABÁ (PA)
Expectativas e ralação na chegada

Tudo começou às 6h15 da manhã do dia 21 de julho. Mal amanhecia na capital paulista e um ônibus do Exército já esperava os estudantes na  porta da OBORÉ para dar início à viagem de estudos. Uma leve brisa lembrava o frio da noite anterior. Aos poucos, um por um foi chegando e reunindo o grupo que faria parte dessa viagem. Quinze minutos depois, já no horário limite de saída, chega a última estudante e a comitiva sai rumo à Base Aérea de Guarulhos.

Em poucas horas, o cotidiano paulistano seria esquecido pelos estudantes. Naquele momento, porém, chegar a tempo era preciso e o trânsito, já um pouco lento no início da manhã, poderia não ajudar. Mas ajudou. Na hora certa todos estavam pesando e despachando suas bagagens. Somente 15 quilos eram permitidos. Às 8h26, após uma boa espera, o avião da Força Aérea Brasileira (FAB) recebeu o grupo. Próxima parada: Brasília.

Na capital federal, depois de encontrar o grupo de militares que iriam acompanhar a viagem, um lanche foi servido antes da próxima decolagem. Ao meio-dia, com o tanque da aeronave cheio, a viagem continuou com destino a Marabá, no Pará. Já no vôo, muitas perguntas foram disparadas pelos estudantes aos militares que estavam a bordo. "Calma, gente. Assim vocês vão esgotar os assuntos das palestras", brinca o coronel Barboza, responsável pela organização da viagem.

Em Marabá, a recepção de uma temperatura de cerca de 35 graus assusta os estudantes que ainda vestiam seus casacos e cachecóis. "Nossa, que lugar quente", diz um. A frase seria repetida ao longo dos cinco dias de viagem – com mais ou menos intensidade. O general Araújo, comandante da 23ª Brigada de Infantaria de Selva, recebe os estudantes e após breves apresentações da cidade e do roteiro do dia, o primeiro deslocamento.

A bordo de cinco voadeiras, a equipe conhece o rio Tocantins, que corta a cidade, criada na época da exploração das castanheiras, há quase 100 anos. As palafitas na beira do rio retratam parte da miséria local: casas humildes, esgoto a céu aberto, nada de asfalto e muitos pés no chão. Apenas 30% da população de Marabá tem acesso a saneamento básico. A viagem continua e a travessia do imenso rio de águas escuras acontece.

De volta a terra firme, um caminhão do Exército espera para levar o grupo à Brigada de Infantaria de Selva de Marabá. A banda toca enquanto os estudantes desembarcam. Tudo está preparado para as apresentações do cotidiano militar: treinamento, instruções, estratégias e práticas. O fim da tarde é o momento da coletiva com o general. Ansiosos por informação, os alunos bombardeiam o comandante com as mais variadas perguntas. Desmatamento, questão indígena, organização do Exército, programa Calhanorte, organizações não-governamentais. Nada ficou de fora. "É muito bom ver um grupo como esse aqui. Precisamos de profissionais que conheçam a região para poder falar com conhecimento o que se passa por aqui", afirma o general Araújo.

O primeiro dia ainda não acabou. É a programação mais longa – justo no dia que todos estavam acordados desde às 5h da manhã. À noite, numa base de treinamento localizada numa mata próxima à Brigada, 36 homens fazem uma demonstração na selva. É a chamada Ação no Objetivo. Pelos igarapés, simulam a aproximação do território do inimigo. Camuflados se igualam à mata e "abatem" os sentinelas. "São exercícios que fazemos sempre. É preciso conhecer o território, ser preciso. Isso demanda muito treino", explica o general Araújo. O treinamento é árduo. Tiros encerram a noite e o estrondoso barulho é apenas uma pequena amostra do potencial de ataque desses profissionais.
 
A noite finalmente chega para o grupo. É meia-noite e em seis horas todos deverão estar novamente de pé, prontos para mais um dia de descobertas na Amazônia.


É preciso planejar

General Araújo mostra a estratégia de ataque antes da ação no objetivo. (Foto: Mariana Felippe)


DIA 2: TERÇA-FEIRA (22) – TUCURUÍ (PA)
Rumo ao rio das formigas

Diferentemente de São Paulo, Marabá já amanhece quente e o passar das horas só vai acentuar o calor. O destino do segundo dia no Pará é Tucuruí – nome indígena que significa rio das Formigas – e seu clima não é diferente.

Comandante do 23º Esquadrão de Cavalaria de Selva, o major Pfaender apresenta o trabalho de seu grupamento, "o único esquadrão de selva do Brasil", defende ele. Assim como todos os pelotões, companhias e brigadas do Exército sua função é defender a soberania nacional e para isso usam armamento pesado, caminhões, barcos e até urutus, blindado utilizado pelos capacetes azuis na Missão de Paz no Haiti. “É tudo para defesa do nosso território”, explica o major.

Além do trabalho habitual, Pfaender conta que a Usina Hidrelétrica de Tucuruí também já fez parte de sua rotina de trabalho. Com pouco mais de 90 mil habitantes, o pequeno município teve sua história transformada pela construção da Usina Hidrelétrica. Não foi apenas sua configuração geográfica que mudou – com a inundação de Breu Branco e Repartimento –, mas a base econômica, a formação da população e as perspectivas acompanharam essa transformação. "Fazendo de Tucuruí um pólo de geração de energia com capacidade para explorar, de forma racional, as belezas naturais enriquecidas pelo lago artificial", dirá Pina, um dos responsáveis por apresentar a hidrelétrica aos estudantes.

Com ou sem geração de energia e desenvolvimento, o major relembrou sua última atuação em defesa do "patrimônio nacional". "Foi no ano passado, a chamada Operação Barragem, que teve início com um protesto pacífico do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e virou uma invasão da hidrelétrica depois que um policial acertou um tiro de borracha em um manifestante", conta.

O episódio relatado aconteceu em outubro de 2007, quando cerca de 300 manifestantes reivindicavam pacificamente o pagamento de indenização às famílias desalojadas por causa da construção da hidrelétrica, há mais de 20 anos. "A idéia era que eles desocupassem o local ao meio-dia, mas depois do tiro de borracha que acertou um deles, todos resolveram invadir a usina. Tinha mulher, criança. Todos acampados, sem comida, nada. Por isso sabemos que não tinha sido programado para acontecer", relata Pfaender. À época, os veículos de comunicação divulgaram que durante a invasão, os manifestantes ameaçavam atear fogo e danificar aparelhos das salas de controle caso as reivindicações não fossem atendidas. Depois de dois dias de acampamento dentro das instalações da hidrelétrica, o Exército foi chamado para intervir.

Foram 750 homens designados para a operação. Dois militares e meio para cada manifestante. Mas nem um tiro foi disparado. "As negociações aconteceram e as pessoas saíram", afirma o major que diz ter boas relações tanto com os dirigentes da usina, como com os representantes dos movimentos sociais locais.
 
Hoje, quase 10 meses depois do ocorrido, as instalações da usina já não são mais as mesmas. Os vidros que foram quebrados durante a invasão foram substituídos por concreto, grades e muros por todos os lados reforçam a segurança do lugar, que se mostrou frágil e incapaz de se proteger, apesar da grandiosidade da construção.

Os temas abordados na visita daquela terça-feira (22) esquentaram ainda mais o clima da pequena Tucuruí. Com a versão do Exército e da hidrelétrica em mãos, faltava ainda ouvir a versão dos integrantes do MAB. Mas não foi possível. A agenda apertada da viagem impossibilitou que os estudantes fizessem as entrevistas na cidade - já marcadas desde São Paulo. Ficaria para depois.

Assim, às pressas, todos se dirigiram até o aeroporto de Tucuruí. Embarcar era preciso. À noite, o avião não decola. Não é como os vôos comerciais. Um Brasília só levanta vôo durante o dia. Já eram quase 17h e o destino era Belém (PA).

A chegada na capital paraense se deu no início da noite. No Hotel de Trânsito de Oficiais, estudantes e coordenadores ficariam durante duas noites: tempo das programações no local e dos primeiros relatos da viagem feitos por eles. Diferentemente de qualquer lugar da conhecida São Paulo, os estudantes aprenderiam nessa viagem que, na Amazônia, acesso à internet ainda é para poucos. E Belém foi um dos poucos lugares onde ele aconteceu.


Hidrelétrica de Tucuruí
Cabos de transmissão de energia da usina de Tucuruí. (Foto: Bruno Huberman)


DIA 3 – QUARTA-FEIRA (23) – BELÉM (PA)
Corrida contra o tempo

Mais um dia amanhece na semana de descobertas amazônicas. Na capital paraense, o calor vai mostrar sua cara logo após a saída do quarto fresco do hotel. O destino daquela quarta-feira (23) já era conhecido na programação: 8ª Região Militar e 8ª Divisão de Exército. Lá, todos seriam apresentados a uma visão mais política do trabalho dos militares na região. A ausência de seu comandante, o general de divisão Breide, restringiram os relatos ao trabalho realizado na divisão.

Responsável por 59,53% da população da Amazônia, os estados que compõem a parte oriental da região são marcados por conflitos, ocupações desordenadas, garimpos, obras de grande impacto ambiental e pouca área de preservação. Esse é o retrato do Pará, parte do Tocantins e Maranhão e Amapá – o mais preservado de todos – e a área de atuação da 8ª Região Militar. “Essa é uma área muito difícil e a 8ª RM é responsável por toda a Amazônia Oriental. Precisamos estar atentos às necessidades das companhias que estão sob nosso comando para agir sempre que preciso for. Cuidamos de toda a logística. Um exemplo simples é com relação a alimentação dos militares. Para chegar comida num pelotão de fronteira são, em média, dependendo da localização, 15 dias de viagem e não podemos atrasar. E isso se repete com todas as nossas ações”, explica o major Ungaretti, responsável pelo setor de operações da estrutura.

O grupo seguiu para o Comando-Geral de Operações Aéreas - Comissão de Aeroportos da Região Amazônica (Comara), responsável projetar, construir, equipar e recuperar os aeroportos da região e executar obras civis de interesse do comando da Aeronáutica. Lá, tiveram contato com o brigadeiro Igreja – maior autoridade da Aeronáutica na região.

Após o almoço, o destino era o Museu Paraense Emílio Goeldi, uma instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e que concentra suas atividades no estudo científico dos sistemas naturais e socioculturais da Amazônia. Além de conhecer o trabalho realizado pela instituição, muitas informações sobre o processo de documentação das línguas indígenas e sobre as descobertas da arqueologia regional foram obtidas.

Um passeio de barco pela baía do Guajará encerrou as atividades do dia na cidade das mangueiras. Pouco tempo para tantas atividades, mas com a programação definida, tudo correu como o esperado: sem atrasos ou surpresas.

Base Aérea

O Caravam para apenas oito passageiros foi o nosso veículo de transporte entre Belém e Macapá. (Foto: Bruno Huberman)


DIA 4 – QUINTA-FEIRA (24) – MACAPÁ (AP)
Instrução na selva

Logo cedo, após um café da manhã, os estudantes e dois coordenadores seguiram viagem rumo à Macapá. Os demais integrantes da equipe iriam na segunda leva, pois o Brasília, que tinha capacidade para carregar toda a comitiva fora substituído por dois Caravan – monomotores de asas altas e vôo baixo. O grupo estava tenso no embarque, mas logo o piloto deu um jeito de acalmar. “Calma gente, esse é o único avião autorizado a carregar o presidente George W. Bush em caso de emergência.”

Ânimos “controlados” após saber que até o presidente norte-americano já teria se aventurado a bordo do pequeno monomotor, o grupo seguiu viagem. Depois do pouso, todos concordariam que não poderia ter sido mais interessante a mudança do avião, pois foi possível perceber todos os detalhes da mudança da paisagem – o que seria impossível com o já conhecido e potente Brasília. “Ver a Ilha de Marajó foi algo incrível”, destaca o professor Pedro Ortiz, coordenador pedagógico do curso. “Aquilo ali é desmatamento ou a vegetação é que assim mesmo?”, questiona Bruno Huberman, um dos 10 estudantes. A vegetação era típica da região.

Descobertas a parte, após quase uma hora o Caravan toca o chão da quente Macapá. Se antes o calor já castigava, Macapá oferecia algo mais intenso. “Deve ser por conta da linha do Equador, que atravessa a capital”, brinca um. Macapá é, de fato, a única capital brasileira cortada pelo Equador e por conta disso, pelo menos duas vezes ao ano, os moradores da cidade podem desfrutar do fenômeno do Equinócio – período que os dias e as noites têm a mesma duração. Em Macapá, o Equinócio pode ser observado do Monumento do Marco Zero, visitado pelos estudantes logo na chegada. 

Depois do turismo e com o grupo todo reunido, um pouco de sobrevivência na selva. Na tarde escaldante, uma instrução militar, montada pelo 34º Batalhão de Infantaria de Selva, mostra ao grupo os tipos de deslocamento treinados dentro d’água. Espinha de peixe e outros nomes utilizados para as formações foram demonstrados. Mas naquele momento todos pensavam apenas em um mergulho na piscina do batalhão. Pedido atendido e liberado. Renovados, após o rápido mergulho, todos se dirigiram aos caminhões que levariam para uma instrução. Uma caminhada pelo mato levou a uma demonstração de montagens de armadilhas e acampamentos.

À noite, uma entrevista coletiva com o tenente coronel Batista, comandante do batalhão, anima as discussões. Sempre que assuntos ligados a indígenas entram na pauta, a conversa se alonga e dessa vez não foi diferente. O coronel deu sua opinião sobre a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Regularizada em 2005 pelo presidente Lula, hoje, a terra é alvo de discussões em todos os setores. No Congresso Nacional se discute formas de revogar a homologação, pois a demarcação contínua das terras “inviabiliza o estado”, alegam os parlamentares da bancada ruralista.

O coronel Batista, que trabalhou durante anos na região, também defende a homologação daquelas terras em ilhas, mas o discurso é diferente do tom encabeçado por arrozeiros e parlamentares. “Trabalhei muito tempo naquela área e não faz sentido a demarcação contínua daquelas terras, pois são grupos diferentes que habitam a região”, explica.

Tema polêmico, a discussão sobre as terras dos 17 mil Wapixana, Macuxi, Taurepang, Patamona e Ingarikó que habitam a área está longe de ser encerrada, mas enquanto nada é resolvido e revogado, o que vale é a sanção presidencial de 2005, que concede o usufruto daquelas terras as cinco etnias. 

O tempo não foi suficiente para esgotar as dúvidas e o próprio debate sobre a questão indígena. O sentimento era que essa pauta começava a ser esclarecida, e outras fontes ainda precisavam mostrar suas vozes, principalmente os indígenas. A entrevista terminou e era hora do jantar e depois ainda viria a luta para conectar computadores e montar mais uma vez uma mini-redação. Assim foi e com horário apertado, mais um dia ficou para trás.


Fotos do ofício 5

Victor Ferreira grava vídeo literalmente na divisa do Hemisfério Norte. (Foto: Roberto Taddei)


DIA 5 – SEXTA-FEIRA (25) – CLEVELÂNDIA DO NORTE (AP)
Onde o Brasil faz fronteira com a França

Dias e mais dias ouvindo sobre as dificuldades do trabalho na fronteira era chegada a hora de conhecer de perto a atuação do Exército nessas localidades. Clevelândia do Norte era o destino. Um destacamento situado às margens do rio Oiapoque. Do outro lado, Guiana Francesa, ou melhor, a França, como todos se referem a pequena vila de São Jorge.

A bordo dos ubás – embarcações de madeira com capacidade de até quatro toneladas – os estudantes chegaram ao pelotão de fronteira. Foram recebidos como autoridades e tiveram a oportunidade de ver uma formatura do grupamento comandada pelo ativo coronel Batista. A rigidez e disciplina dos militares embaixo do sol escaldante do extremo norte do país impressionaram todos os presentes.

A formatura foi seguida de uma instrução de selva. Para isso, outro deslocamento a bordo dos ubás levou o grupo pelos igarapés de águas transparentes a um pequeno descampado. Água e fogo são essenciais para a sobrevivência no mato e os estudantes aprenderam como encontrar e o que fazer em situações de emergência. “Não precisa entrar em pânico. A mata é amiga. O importante é achar um curso d’água e depois fazer um fogo. Dessa forma é possível sobreviver até ser encontrado”, ensina o coronel.

Depois das aulas um pulo no território francês. O grupo é recebido por membros da Legião Estrangeira na Guiana Francesa. O encontro foi amistoso e o breve passeio ocorreu tranquilamente. Na praça, a população enfeita uma festa. Brasileiros e moradores locais dividem o espaço. Na zona de fronteira, as nacionalidades também se confundem.

De volta então a Macapá, o jantar de despedida. Última noite, cheia de comemorações e reflexões. Na manhã seguinte, o retorno. De volta à selva de concreto, outra viagem se inicia para os estudantes: assimilar tudo o que viveram, escrever e publicar seus textos – obrigações por vezes esquecidas no correr da descoberta da Amazônia Oriental.

Rio Oiapoque

Voadeira com nossos repórteres, coordenadores e militares. (Foto: Bruno Huberman)

 
 
 
   
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