|
18/04/2007
Era dia de festa. Fernanda Bianca fazia dezessete anos. Junto com ela, outros 57 moradores da maior favela de São Paulo, Heliópolis, comemoravam a visita ao campus principal da maior universidade do país.
A excursão “Cidade do Sol visita a Cidade Universitária: viemos ver o que é nosso” resultou de aulas de matemática ministradas na comunidade pela OBORÉ. Ao final das aulas, chegou-se à conclusão de que todo ano Heliópolis paga, via ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), 1,9 milhões de reais para a USP. Agora, era a vez desses mantenedores da universidade pública conhecerem de perto como o orçamento é gasto.
Até 2005 o ônibus municipal poderia tê-los levado diretamente ao destino. Depois que a SPTrans suspendeu a linha 477U, alegando baixo número de usuários, ficou mais difícil chegar lá. À época, o poder público não discutiu por que a linha era pouco usada. Entre outras perguntas não formuladas, como e por que a comunidade de 125 mil habitantes e arredores não era incentivada o suficiente para participar da vida da instituição de ensino superior mais prestigiada do Brasil? Para além da exclusão pelo vestibular, como não ocupavam o espaço público que oferecia museus e cinema gratuitamente? O fato era que, naquele sábado de abril, dois ônibus particulares saíram da Estrada das Lágrimas rumo ao Butantã.
Conhecimento no tablado
Alan José da Silva, de 14 anos, havia dormido bem cedo no dia anterior. Queria acordar a tempo e não atrasar o passeio. Enquanto comia um salgado preparado pela cooperativa de funcionários da lanchonete da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), ele contava sua surpresa com a USP. “Aqui tem muito carro. E lá [em Heliópolis] não tem tanta árvore”.
Tempo contado. Os moradores se dirigiram para primeira palestra do dia. Na entrada do auditório, olhos arregalados de deslumbre: a onipotência de um espaço limpo e amplo com bancos almofadados. Aos poucos, as pessoas foram se sentando nas últimas fileiras. Curiosamente, a longas distâncias da autoridade intelectual e administrativa que os recebia, o vice-diretor Marcelo de Andrade Romero. “Só vale se for lá na frente”, chamou em voz alta Geronino Barbosa, liderança da comunidade e locutor da rádio que será reaberta em maio.
Do alto do tablado, Marcelo Romero, mestre pela USP, doutor pelo Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial, em Portugal, pós-doutor pela University of Cincinatti e pela University Of Arizona, nos Estados Unidos, e livre-docente pela USP, elencou as pérolas da FAU: 1.500 alunos, 140 professores, 130 funcionários, além da visita de pelo menos 50 docentes internacionais por ano. E afirmou: “É essa a nossa contribuição para a sociedade: formar essa quantidade enorme de profissionais que vão para o mercado, vão para o país inteiro”. Também exaltou a ‘exportação’ de arquitetos: “Tem alunos da FAU trabalhando na Europa, nos Estados Unidos, na América Latina. Então é uma contribuição muito importante”.
Após a exibição de vídeo sobre a história da faculdade, desde a concepção democrática e libertária do espaço físico até o sucesso de célebres profissionais que ali se formaram, foi a vez da professora aposentada Maria Ruth Amaral de Sampaio recuperar o histórico de apoio à Heliópolis. “Podem contar com a FAU para tudo o que quiserem, porque Heliópolis é um grande laboratório nosso”. Ela citou sua pesquisa de livre-docência sobre a favela e a construção de mais de 120 casas em mutirão durante nove meses, a partir do projeto de conclusão de curso do aluno Cláudio Roberto Scheel, no final dos anos 1980. “O nosso pezinho continua lá”, afirmou.
Aflitos, alguns moradores levantavam a mão, pedindo a palavra. Queriam saber como resolver o problema de saneamento básico, de moradia precária, do risco de desabamento das casas erguidas ao longo do córrego. “Já que vocês fizeram um trabalho tão bom lá trás, no início, eu desafio vocês a voltar e nos ajudar naquelas construções tão precárias que as pessoas, por necessidade, foram ampliando de forma inadequada. Eu desafio vocês a voltar e não ir embora, continuar com a gente”. Resposta de pronto: “Está prometido”. Salva de palmas.
Duas liberdades
Depois da conversa, um passeio pelas instalações da faculdade. Fernanda, a aniversariante, perguntou à professora Maria Ruth:
- “Por que está tudo pichado?”, apontando para as salas de aula.
- “Porque eles [alunos] querem passar suas mensagens”.
A educadora Marli de Menezes, de Heliópolis, entrou na conversa:
- “Ué, mas eu aprendi que o ato de você pichar está denegrindo aquilo que você picha(...) Como professora de Educação Infantil, eu me senti perdida, porque tudo o que as crianças aprendem a conservar, preservar, é esquecido aqui”.
- “É por causa da liberdade”.
- “Eu sempre achei que liberdade fosse outra coisa”.
- “Essa liberdade aumenta a criatividade deles”.
- “Eu não sabia, vou procurar saber disso sim”.
- “Você pode estar certa disso. Isso eu tenho certeza. A liberdade aumenta a criatividade’.
O mar e o rádio
Enquanto as crianças e adolescentes conheciam o Museu do Instituto Oceanográfico e descobriam que, com o dinheiro pago anualmente por Heliópolis à Universidade, daria para comprar um equipamento CTD, utilizado na coleta de amostra da água do mar, os adultos entravam no Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE). Um morador perguntava ao funcionário do estúdio de rádio se o uso do laboratório seria sempre livre para a comunidade. “Não estou apto a responder a questão”, disse o funcionário.
No Museu, os jovens se assustavam ao ouvir que o Sol um dia iria acabar, assim como as estrelas que vemos no céu, sobras do passado. Daqui cem milhões de anos não existiria mais vida na Terra. “Até lá, ainda dá tempo de chupar muito sorvete”, brincava a monitora Débora Gutierrez, aluna do 4º ano de Oceanografia.
O piauense Zenildo Ribeiro não estava assustado, mas encantado. Nunca viu o mar, mas naquela hora estava a centímetros de distância do esqueleto de uma baleia, exposto entre os aquários do museu. “Eu era segurança, trabalhava direto, sábado, domingo, feriado, não tinha tempo de ir para a praia”.
Enquanto Márcia Aparecida indagava à monitora se os estudantes do curso estudavam processos de dessanilização da água salgada, “para ela ficar bebível”, outro morador de Heliópolis, no auditório de bancos almofadados dos cursos de Jornalismo e Editoração, pedia verbas ao ex-chefe do departamento, José Coelho Sobrinho, para imprimir o jornal da comunidade.
“Não viemos aqui para pedir dinheiro. Dinheiro se pede ao BNDS [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social]. Viemos pedir o conhecimento da Universidade”, interrompeu Sérgio Gomes, da OBORÈ, um dos organizadores do evento. Outra organizadora, a professora da Universidade Metodista de São Paulo, Cecília Peruzzo, acrescentou a necessidade de elaboração conjunta e socialização do conhecimento, diagnóstico e soluções para os problemas da favela.
Democratização
Jovens e adultos se reuniram novamente para visitar a TV USP, onde o diretor Pedro Ortiz discutiu o desafio da TV digital para a democratização da comunicação no Brasil e estimulou a participação de Heliópolis na elaboração e proposição de vídeos para o canal. Discussão importante para a comunidade que mantém há quase 15 anos uma rádio comunitária. Tempo contado. Era chegada a hora do almoço.
Na porta do restaurante central, os moradores da Cidade do Sol se juntaram à fila. Ali se iniciava (e terminava) o primeiro contato direto com os estudantes da Universidade de São Paulo. Mesmo lendo a faixa de seis metros com o nome da excursão e os panfletos sobre o sentido da visita, nenhum puxou conversa com os visitantes. Uma aluna ainda reclamou com seu colega: “Ah, é por isso que a fila tá tão grande!”
Questionado pela Reportagem sobre o evento, o peruano David Flores, 29 anos, mestrando em Física, comentou: “Vir apenas uma vez não faz sentido, precisa de continuidade. Voltar para casa ou esquecer não adianta”.
Um rápido passeio de ônibus pelo campus e, depois, rumo ao Itaú Cultural para assistir à palestra da professora Maria da Gloria Cohn (USP) e da vereadora Soninha Francine sobre os projetos de educação não-formal inscritos no programa Rumos Educação Cultura e Arte. Tudo a ver com o “Curso Correspondentes da Cidadania”, ministrado para Heliópolis a partir de maio.
Balanço do dia
Ao final do dia, os cidadãos da Cidade do Sol retornam para suas casas. Sorrisos fixos nos rostos. Mas sobram perguntas e contradições para quem é de fora da comunidade e acompanhou o passeio. Para quem ouviu que Rubens de Oliveira e Adilson de Almeida Pereira, ambos com 13 anos, continuam detestando matemática. Mesmo depois de saberem que, graças ao cálculo, foi possível descobrir quanto seus pais pagam de imposto para o lugar que naquele dia eles conheceram.
Sobram angústias para quem percebeu que a idéia da visita conjunta à USP, inédita na história da favela, não foi idealizada por ela, mas por intelectuais de fora da comunidade. Para quem não encontrou durante todo o passeio sequer alguém das entidades representativas de estudantes, funcionários ou professores para acolher os visitantes. Para quem acredita que, mesmo enfrentando a resistência dos governos e das elites, todas as outras polis – Mirandópolis, Paraisópolis, Cidade Tiradentes - devem se organizar e se apropriar do que é seu, nosso, de todos: as universidades públicas, os hospitais públicos, o transporte público, todos os serviços públicos. O próprio espaço público. |
|