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  O drama sem fim das rádios comunitárias
Nelson Breve
  27/10/2006

A edição nº 19 (outubro/2006) da Revista ARede traz uma reportagem de capa sobre as rádios comunitárias. Acompanhe a íntegra do texto:


Lençóis (BA), setembro de 2002: lacrada a Rádio Laúza FM, projeto comunitário reconhecido pelo governo federal. Valente (BA), 7 de janeiro de 2003: mesmo depois de outorgada, a Rádio Valente é a primeira comunitária lacrada pela Polícia Federal e pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) no governo Lula. São Gonçalo (RJ), fevereiro de 2006: fechada a Rádio Novo Ar, que, pela segunda vez, precisa mudar de sede para conseguir autorização do governo. São Paulo (SP), julho de 2006: fechada a Rádio Heliópolis, premiada e reconhecida internacionalmente pelos serviços prestados a uma comunidade de 125 mil favelados.

De acordo com dados da Anatel, nos últimos cinco anos, foram fechadas, em média, por semana, 50 rádios que não estavam autorizadas a funcionar pelo governo. No balanço do primeiro semestre deste ano, foram lacrados mais de dez transmissores radiofônicos por dia. Cerca de metade deles com potência inferior a 25W, que não dá para alcançar mais de cinco quilômetros de raio com recepção sonora de boa qualidade. Rádios tipicamente comunitárias, que querem ter o direito de nascer e não conseguem se desvencilhar de um drama sem fim.

A Rádio Laúza, de Lençóis (BA), surgiu com um movimento da comunidade, chamado Avante Lençóis, que conseguiu cassar um prefeito ao manter a população do município informada sobre as irregularidades na prefeitura e mobilizada com um jornal quinzenal de uma folha mimeografada – “O Avante”. Os moradores da cidade de 9 mil habitantes na Chapada Diamantina fizeram um bingo para comprar os equipamentos e a emissora foi colocada no ar, em outubro de 1999. Desde então, tenta se legalizar.

Já alterou estatutos, pagou taxas, teve transmissor lacrado e depois roubado, seus dirigentes foram processados, o pedido de licença arquivado pelo governo sem aviso à entidade. E, agora, depende de um mapa atualizado das ruas do município, que a Prefeitura não dispõe e a entidade não tem recursos para encomendar. “É um processo extremamente desgastante, oneroso e injusto. É uma briga para tentar fazer as pessoas desistirem ou ficarem como rádios piratas”, desabafa Nelma Pereira de Jesus, secretária geral da Associação Rádio Comunitária Avante Lençóis, que teve menos dificuldades para obter o Certificado de Utilidade Pública Federal, concedido pelo Conselho Nacional de Assistência Social.

A entidade é reconhecida pelos governos federal, estadual e municipal, por desenvolver projetos muito importantes para a comunidade. Além de ter jornal, suspenso por falta de recursos, e a rádio, único meio de comunicação do pequeno município e arredores, a associação dá cursos básicos de informática e acesso à internet para toda a comunidade, na Estação Digital Avante (programa da Fundação Banco do Brasil). Mantém uma biblioteca comunitária, com 4 mil livros, e oficinas de arte, artesanato e reciclagem para crianças e adolescentes, que também recebem orientações sobre cidadania, cultura e ecologia.

Longo martírio

O martírio das rádios comunitárias começou há mais de dez anos. Para fazer a privatização das telecomunicações do país, o governo precisava mexer em uma lei muito antiga, que também tratava da radiodifusão. Não teve coragem de enfrentar os donos de emissoras de rádio e televisão, o que dificultaria a aprovação do que interessava. Mas precisava resolver o problema de milhares de emissoras de rádio de baixa potência operando sem licença, que ficariam sem regulamentação. Muitas eram ligadas a entidades que desenvolviam trabalhos comunitários relevantes para a sociedade. Outras, vinculadas à luta pela democratização dos meios de comunicação, chamadas de rádios livres. O Congresso acabou aprovando uma regulamentação específica para as rádios comunitárias, mantendo para as comerciais a legislação que vigora desde a década de 1960. Os movimentos em defesa das rádios comunitárias comemoraram a possibilidade de entrar para a legalidade, sonhando com o direito à certidão de nascimento. Eles não contavam que a força de pressão das emissoras comerciais no Congresso produziria uma Lei com tantos obstáculos à natalidade.

A legislação só permite que o governo autorize um canal de rádio comunitária por localidade, exclusivamente em freqüência modulada (FM), com uma cobertura restrita à comunidade de um bairro ou vila, operada em potência máxima de 25W e antena não superior a 30 metros. Precisam ser mantidas por fundações ou associações instituídas legalmente e devidamente registradas, sediadas e dirigidas por residentes na mesma área da comunidade atendida. Os equipamentos devem ser homologados ou certificados pelo governo. A formação de redes para transmissão conjunta é proibida, mas elas têm de cumprir um tempo mínimo de operação diária.

A licença para operar será cassada, caso as emissoras provoquem interferência sistemática nas rádios comerciais ou outros serviços de telecomunicação, mas as comunitárias estão proibidas de ter qualquer proteção contra interferência das outras. Patrocínios só são permitidos a título de apoio cultural, apenas de estabelecimentos situados na área da comunidade. Além disso, para dar início ao processo, precisam apresentar uma série de documentos sobre a entidade e seus dirigentes, e manifestações de apoio restritas a entidades com sede na mesma área da emissora.

Lei do apartheid

O que deveria ser uma Lei do Ventre Livre para as rádios comunitárias tornou-se uma Lei do Apartheid da Radiodifusão. O canal para obter uma autorização de funcionamento tem gargalos tão apertados, que é praticamente impossível elas sobreviverem na legalidade. E o governo federal o estreitou ainda mais, com uma regulamentação que obriga as entidades a percorrer um circuito burocrático que é uma verdadeira corrida de obstáculos. Com isso, grande parte delas não consegue atender as exigências por falta de informação, estrutura, organização ou habilidade técnica para mexer com a documentação.

Foi o que aconteceu com a Comunidade Novo Ar (Comnar), em São Gonçalo (RJ). Criada em fevereiro de 1996, começou a funcionar antes da aprovação da Lei das Rádios Comunitárias, que já estava em discussão, mas só entrou em vigor dois anos depois. O pedido de licença foi protocolado em 17 de dezembro de 1998. A entidade mudou de endereço, alterou o estatuto, informou a Delegacia Regional da Anatel no Rio de Janeiro e sempre ouvia a mesma resposta, quando questionava a situação do processo: “Aguardem, está encaminhado”.

Cinco anos depois, quando conseguiram patrocínio para enviar um advogado a Brasília, os dirigentes da entidade souberam por um deputado que o pedido havia sido arquivado por causa de problemas no estatuto antigo. Ao solicitar o desarquivamento, descobriram que o governo já havia autorizado o funcionamento de duas emissoras comunitárias em São Gonçalo. A Rádio Aliança, de uma entidade ligada à Igreja Católica, e a rádio da Associação Morro do Castro, que conseguiu a autorização no fim de 2002, mas nunca funcionou. Depois de muita reclamação, o Ministério das Comunicações concordou em reabrir o processo, mas queria que a entidade iniciasse um novo pedido, o que a colocaria no fim da fila, à espera da abertura de um novo canal. “Fui várias vezes ao ministério, entrei em contato com o procurador, escrevi dezenas de ofícios. No início de 2004, exigiram que a sede da rádio se deslocasse cerca de dois quilômetros, porque havia outra rádio querendo essa área”, conta Maria das Graças Rocha, presidente da Rádio Novo Ar e secretária-executiva da Federação das Rádios Comunitárias do Rio de Janeiro (Farc). Tratava-se de outra Rádio Aliança. Dessa vez, ligada a uma comunidade evangélica.

A partir daí, a Comunidade Novo Ar teria começado a receber visitas freqüentes da Anatel, segundo a presidente da rádio. Em abril de 2004, foi fechada sob a alegação de estar provocando interferência em outras emissoras. Reabriram e fecharam várias vezes na queda-de-braço, chegando a receber cinco multas com valores próximos a R$ 1,9 mil que estão sendo contestadas judicialmente. Em maio de 2005, o transmissor foi lacrado pela Polícia Federal. Não adiantou. Tiraram o lacre e reabriram. A teimosia da Comnar durou até 14 de fevereiro deste ano, quando a Anatel e a PF foram cumprir mandado de busca e apreensão do transmissor, que custa cerca de R$ 7 mil. Não foi achado, mas a rádio está sem funcionar desde então. “O Minicom diz que a gente tem que sair daqui, por causa da outra rádio. Então, em julho, arrumamos outra casa, com as coordenadas de latitude e longitude que o ministério pediu. Estamos em fase de mudança”, avisa Maria das Graças, entre o entusiasmo e a resignação.

De barriga no chão

A fiscalização feita pela Anatel em conjunto com a Polícia Federal é uma das principais reclamações das entidades que lutam pela disseminação das rádios comunitárias. Alegam perseguição política, defesa dos interesses da rádios comerciais, truculência desnecessária e arbitrariedades cometidas, com base em uma legislação no mínimo confusa. Dizem que a repressão vem de longe, mas teria piorado no governo atual. As estatísticas apontam certa lógica na suspeita. Em 2002, o número de transmissores lacrados foi semelhante ao de 2005, em torno de 2 mil. Mas, naquela época, para cada 11 lacres em equipamentos com potência acima de 25W, era lacrado apenas um de potência menor. Hoje, a relação é de um para um. “A Anatel está comprometida com a política contra as rádios comunitárias”, acusa Joaquim Carvalho, diretor jurídico da Associação Brasileira das Rádios Comunitárias (Abraço), que calcula em 15 mil o número de rádios operando sem licença no Brasil, quase todas com histórico de lacre.

O superintendente de Fiscalização da Anatel, Edilson Ribeiro dos Santos, contesta, dizendo que a grande preocupação da Anatel é com a administração do espectro eletromagnético, tanto para garantir o uso eficaz e harmonioso dos canais de propagação das ondas sonoras, quanto para assegurar que interferências indesejáveis atrapalhem os serviços de radionavegação nas proximidades de aeroportos. “Trabalhamos sob muita pressão, andamos no fio da navalha e não podemos fazer outra coisa a não ser seguir rigorosamente os procedimentos”, diz ele, que atua na área de fiscalização e auditoria há mais de 30 anos e assegura que os fiscais da Anatel agem apenas para garantir o cumprimento da lei. Essa também é a visão da PF. Atuando há cinco anos no Grupo de Combate à Atividade de Rádio Clandestina de São Paulo (GCARC), o delegado Marcelo Previtalli diz que recomenda à sua equipe dar tratamento civilizado ao cumprimento dos mandados expedidos pelo Poder Judiciário. Ele observa, no entanto, que o padrão geral desse tipo de operação é usar arma longa e ocupar de surpresa o local, rendendo com energia quem estiver presente. “Nós nem precisaríamos de mandado de busca para nenhum lugar. A lei me permite entrar chutando a porta com metralhadora na mão e colocar todo mundo de barriga no chão. Pois não sabemos se estão armados, se é uma rádio que prega a palavra de Deus ou a apologia ao crime”, argumenta.

Joaquim Carvalho também responsabiliza a Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert), pelo que chama de repressão organizada contra as rádios comunitárias. De acordo com ele, apesar das restrições impostas pela lei ao funcionamento das rádios comunitárias, as emissoras comerciais não aceitam a concorrência delas, porque temem perder receita publicitária em decorrência da diminuição da audiência. “Em vez de se preocupar com as rádios comunitárias, deveriam olhar para dentro e ver qual é o problema delas. Quem escolhe a estação é o ouvinte. A culpa é das rádios comunitárias que se instalam ou da péssima produção das rádios comerciais?”, questiona Carvalho. O consultor jurídico da Abert, Alexandre Jobim, defende as rádios comerciais, dizendo que elas enfrentam uma concorrência “desleal e predatória” das que ele chama de “pseudo-comunitárias”. Mesmo reconhecendo a existência de emissoras que prestam serviços sociais às suas comunidades, Jobim reclama que grande parte das autorizadas a funcionar pelo governo infringe a lei comercializando publicidade “a preço vil”, deixando de pagar direitos autorais, fazendo proselitismo político, religioso e ideológico ou sendo controladas até por criminosos. “Não queremos que o Estado amplie as outorgas, pois iria piorar de forma geométrica o caos que já existe no espectro”, afirma o advogado, filho do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim.

Desobediência civil

A insistência na desobediência civil ocorre porque muitas entidades, como a Avante Lençóis e a Comunidade Novo Ar, não se conformam em ser reconhecidas pelo governo como promotoras de importantes projetos sociais de inclusão e não ter o direito de se comunicar com a população beneficiada, enquanto outras, que atendem apenas interesses individuais ou segmentados, estão funcionando legalmente e sem repressão. A Comunidade Novo Ar já foi agente do Programa Comunidade Solidária, no governo anterior. Colaborou com o Programa Primeiro Emprego. Possui um Centro de Referência da Mulher, premiado pelo Fundo Ângela Borba, um curso pré-vestibular, premiado em 2003 pela Unicef e pelo Banco Itaú. Além de abrigar uma antena do Gesac, o Governo Eletrônico Serviço de Atendimento ao Cidadão, programa do próprio Minicom que visa dar acesso à internet às comunidades de baixa renda.

Os casos da Rádio Laúza, no interior do país, e da Novo Ar, em uma região metropolitana, não são isolados. Desde a regulamentação da lei, em agosto de 1998, o Minicom já recebeu 17.351 pedidos de autorização para operar rádios comunitárias. Quase a metade deles (8.180) sequer foi analisada. Das 9.271 entidades que conseguiram dar andamento ao processo, mais da metade tiveram os pedidos arquivados. Segundo informações disponibilizadas pela Anatel, até o fim de setembro, o governo havia autorizado o funcionamento de apenas 2.579 emissoras comunitárias. Destas, apenas 1.803 já possuem licenças definitivas aprovadas pelo Congresso. Outras 470 estão autorizadas a operar em caráter provisório e 306 estão paradas em alguma gaveta entre a Casa Civil da Presidência da República e as Comissões que tratam do assunto na Câmara ou no Senado. Mais de 1,8 mil estão barradas em alguma parede do labirinto conhecido como Departamento de Outorga de Serviços da Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica do Minicom, que dispõe pouco mais de 20 funcionários para analisar os processos.

Na região sisaleira do sertão da Bahia, o Movimento de Organização Comunitária (MOC), entidade que participa de vários fóruns de discussões de políticas públicas, como o Conselho Regional de Desenvolvimento Territorial, apóia cerca de 20 rádios comunitárias. Apenas seis conseguiram a licença para operar. Quase todas, inclusive as legalizadas, já foram fechadas pela Anatel. O coordenador geral da Abraço-Sisal, Cleber Silva, reclama de perseguição política. “Grupos políticos que mandam no estado entendem que as rádios ligadas a entidades da sociedade civil são de esquerda. Onde tem programas jornalísticos, que informam a situação das prefeituras, o orçamento, o desvio de verbas, as rádios são perseguidas”, acusa, lembrando que a Rádio Valente, da cidade de Valente, que está autorizada a funcionar, já sofreu várias visitas da Anatel, enquanto a rádio comercial Sisal AM, da vizinha Conceição do Coité, não teve nenhuma nos últimos oito anos.

De acordo com levantamento feito pelo consultor técnico da Câmara dos Deputados, Cristiano Aguiar Lopes, a principal barreira enfrentada pelas rádios comunitárias é o filtro político dos avisos de habilitação. O ministro de plantão é quem decide qual cidade entra e qual não entra na lista das que poderão ter rádio comunitária. A agilidade na tramitação dos processos também tem um crivo político. No início de 2005, Cristiano teve acesso a um banco de dados chamado “Sistema Pleitos”, criado, no ano anterior, com o objetivo de dar um acompanhamento especial aos processos com apadrinhamentos políticos de parlamentares, governadores, prefeitos ou funcionários graduados do governo federal. Ele cruzou a lista com os processos arquivados e autorizados, entre 1º de janeiro de 2003 e 31 de dezembro de 2004, e constatou que 71% das 503 emissoras autorizadas a funcionar no período tinham algum apadrinhamento político. Por outro lado, 72% dos 2.329 processos arquivados não tinham padrinho algum.

A pesquisa mostra que, sem padrinho, apenas uma em cada 12 associações que pleiteiam uma rádio comunitária alcançam o objetivo, enquanto mais de uma em cada três apadrinhadas consegue a autorização. Um outro dado levantado por Cristiano também chama a atenção. Dos cerca de 5 mil processos arquivados pelo governo, cerca de 80% foram por falhas decorrentes dos entraves burocráticos, como a falta de manifestação da entidade no prazo legal ou de apresentação correta da documentação exigida, ou desvios de finalidade (vínculos ideológicos, fins lucrativos ou preferência religiosa) e só 20% por dificuldades técnicas. “É uma coisa velha na política: criar dificuldade para vender facilidade”, conclui o consultor.
 
O problema é antigo, mas o gargalo ficou mais apertado no governo atual. Mais de 80% dos processos concluídos ou em andamento foram iniciados no governo anterior (7.531), que disponibilizou freqüências para 4.612 localidades por intermédio de 18 avisos de habilitação. O governo Lula publicou apenas três avisos, disponibilizando canais para mais 2.397 comunidades. Das emissoras autorizadas a funcionar (outorgadas), quase 70% o foram pelo governo anterior. Se tomarmos como referência somente o período entre a publicação das primeiras autorizações (agosto de 1999) e a das mais recentes registradas no último balanço do Minicom (março de 2006), o governo Fernando Henrique Cardoso autorizou, em média, o funcionamento de 42 rádios comunitárias por mês, enquanto o governo Lula autorizou apenas 23.

Labirinto burocrático

É preciso dar o desconto de que o governo atual recebeu, como herança, uma verdadeira bagunça no setor de outorgas de rádios comunitárias do Minicom. No fim de 2002, pouco antes de dar posse ao sucessor, o presidente FHC baixou um decreto extinguindo todas as delegacias estaduais do Minicom, que faziam a interlocução das entidades com o governo federal. Com isso, o departamento de outorgas foi surpreendido com milhares de processos que estavam nas prateleiras estaduais. Grande parte sem nenhuma providência, além do carimbo do protocolo de recebimento. A repartição emperrou. Nos primeiros cinco meses de 2003, não foi autorizada nenhuma rádio. Por pressão dos movimentos pela democratização dos meios de comunicação, o governo foi obrigado a criar um grupo de trabalho no Minicom. Representantes da sociedade civil, como o falecido Daniel Herz, do Conselho de Comunicação Social, e José Carlos Rocha, do Fórum Nacional pela Democratização dos Meios de Comunicação, participaram dos trabalhos.

O resultado até que foi satisfatório para desemperrar os processos. Foram simplificados procedimentos, criada uma força-tarefa para analisar os processos, organizados manuais para orientar as comunidades interessadas, adaptados programas de informática para facilitar o acompanhamento dos processos e dar maior transparência à tramitação. Entre junho de 2003 e janeiro de 2004, foram autorizadas a funcionar 404 rádios comunitárias, uma média de 50 por mês. Desempenho só superado no último ano do governo anterior. Mas, depois que o ministro Miro Teixeira foi substituído por Eunício Oliveira no Minicom, a média de autorizações caiu para menos de 15 por mês. “Resolvi não fazer nenhum edital novo, enquanto não limpássemos a pauta. Inclusive paramos de receber demandas novas que não estavam enquadradas nas áreas disponibilizadas, devolvendo os processos, pois a regra antes era deixar na prateleira”, justifica Eunício, que, no fim de 2004, criou um segundo grupo de trabalho para fazer um diagnóstico e propor soluções.

O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) foi criado depois que a Associação Brasileira de Radiodifusão e Comunicação Comunitária (Abraço) do Rio Grande do Sul, junto com outros movimentos sociais, ocupou a sede da Anatel para denunciar a repressão contra as rádios comunitárias. O trabalho só foi concluído depois de nova troca no comando do Minicom. O deputado cearense foi substituído pelo senador mineiro Hélio Costa, que não gostou das conclusões do GTI e convenceu o presidente Lula a esperar ao menos passar as eleições para encaminhar as propostas. O GTI concluiu que o sistema de outorgas está irremediavelmente emperrado e que a legislação precisa ser modificada para que as emissoras cumpram o papel de construtoras da cidadania. O relatório final constata que a morosidade do sistema de outorgas faz com que um pedido leve, em média, três anos e meio para ser atendido. Alguns estão esperando há oito anos.
 
Por causa dessa situação, o procurador regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, Sérgio Gardenghi Suiama, está preparando uma ação popular a pedido do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal e de outras 12 entidades que defendem a democratização dos meios de comunicação. Já dispõe de um relatório contendo as estatísticas de fiscalização e outorgas, as considerações dos grupos de trabalho do governo e as contradições da legislação que autoriza o funcionamento de rádios comunitárias, mas complica o caminho para sua legalização. De acordo com o relatório preparado pelas entidades, “existe uma contradição na eficiência dos órgãos federais, pois atuam com muita morosidade, para outorgar licenças de funcionamento de rádios comunitária, e com extrema rapidez e agilidade para reprimir as associações, prendendo e processando seus representantes legais e operadores das emissoras populares, apreendendo equipamentos e destruindo trabalhos e serviços comunitários muitas vezes essenciais às comunidades em que as emissoras estão inseridas”.

Alterações na Lei

O relatório do GTI considera que o governo precisa reconhecer a comunicação por intermédio das rádios comunitárias como estratégica para o Estado e fazer um esforço efetivo e eficaz para sua disseminação. Para isso, propõe alterações na lei das rádios comunitárias que atendem à boa parte das reivindicações dos movimentos sociais, como o fim das proibições para proteção dos canais, da formação de redes para transmissão em cadeia, da veiculação de publicidade e das limitações de potência e alcance. O assessor especial do gabinete pessoal do presidente Lula, Delcimar Pires, que coordenou o GTI, garante que a proposta será encaminhada ao Congresso ainda este ano. “Existe o compromisso de enviar logo que a eleição esteja resolvida. Não foi encaminhada antes, porque, na avaliação em conjunto com o ministro Hélio Costa, o presidente considerou que, até em função do momento eleitoral, não seria conveniente”, explicou.

A Abraço considerou a proposta insuficiente e seus dirigentes não acreditam em solução de curto prazo. Argumenta que, mesmo com o governo cumprindo o prometido, a proposta dependerá do Congresso, que há mais de 40 anos se curva, sistematicamente, aos interesses das emissoras comerciais. Até porque grande parte dos congressistas é dona indireta de meios de comunicação. Joaquim Carvalho acredita que o melhor caminho para resolver o problema é pela via do Poder Judiciário. Para isso, as entidades estão capacitando advogados e fazendo trabalho de convencimento dos juízes de primeira instância. No fim do ano passado, tiveram uma vitória importante. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu uma ação da Associação de Comunicação Comunitária Educativa e Cultural Alegrete, que dirige a Rádio Popular FM de Porto Alegre.

A decisão garante o funcionamento dela até a obtenção de licença, pois considera que o Ministério das Comunicações está desrespeitando o devido processo legal, ao deixar de responder, em um prazo razoável, o pedido de autorização feito pela entidade. O relator do processo, ministro José Delgado, argumentou que “não se pode conceber que o cidadão fique sujeito a uma espera abusiva que não deve ser tolerada”, uma vez que cumpriu as formalidades legais exigidas e “espera já há cinco anos, sem que tenha obtido uma simples resposta da Administração”. A Advocacia Geral da União, em nome da Anatel, recorreu ao STF. O processo está nas mãos do ministro Carlos Britto, que aguarda parecer do Procurador Geral da República. “Se o governo tivesse um sistema ágil de outorga, se as comunidades fossem atendidas rapidamente, não haveria proliferação das rádios. Isso só acontece porque existe um movimento de resistência. Não adianta fechar uma rádio em um dia, no outro abre de novo. Fecha uma e abrem duas”, adverte o diretor da Abraço. 

*Colaboraram Lia Ribeiro Dias e Verônica Couto

Solução de emergência para a Heliópolis

Fechada desde julho, ela voltará ao ar com uma licença especial da Anatel “para fins científicos ou experimentais”. O episódio, que levou à interferência direta do presidente da República, fez o Minicom desengavetar a solução de freqüência para as radios comunitárias da cidade de São Paulo. Os primeiros avisos de habilitação devem ser publicados ainda este ano.

Há 35 anos, os moradores da favela de Heliópolis lutam por um espaço no solo de São Paulo. A segunda maior favela do Brasil e da América Latina, na zona sul da capital, abriga 125 mil habitantes — mais da metade crianças e jovens de até 25 anos, quase todos de origem nordestina, que se espalham por uma gleba do tamanho de 2 mil campos de futebol (1 milhão de m²).

Depois de décadas de luta, o espaço das primeiras moradias definitivas começa a se tornar realidade com o Projeto de Verticalização de Favelas da Prefeitura de São Paulo. Mas outra dura batalha por espaço está em curso há quase 15 anos: a luta por um pedaço do ar.

Conhecida internacionalmente por seus programas sociais, a Rádio Heliópolis está fechada desde 20 de julho, porque, apesar de ter nascido em 8 de maio de 1992, e de ter solicitado autorização para funcionar legalmente há sete anos, por intermédio da Unidade de Núcleos, Associações e Sociedades dos Moradores de Heliópolis e São João Clímaco (UNAS),  ainda não foi devidamente licenciada pelo governo federal. O problema é que o “ar” de São Paulo está totalmente congestionado pelas emissoras de rádio comerciais. Mas a Lei das Rádios Comunitárias, aprovada em 1998, garante um canal de FM para emissoras de baixa potência vinculadas a entidades comunitárias em todas as cidades do país.

Como o governo não arrumava um jeito para cumprir o estabelecido na legislação, a Rádio Heliópolis foi arrumando um cantinho no espectro de freqüência modulada da capital para atender sua comunidade. Por causa de interferência em emissoras comerciais, teve de mudar duas vezes de canal. Há quatro anos, a rádio, que surgiu para ajudar as famílias a localizar suas crianças perdidas no complexo de ruelas da favela, vinha transmitindo em 97,9 MHz.

Tocando músicas, dando informações sobre as lutas, anseios e conquistas da comunidade e passando dicas sobre saúde, higiene, alimentação e direitos trabalhistas, a rádio cumpre um importante papel de organização social. Em média, cerca de 300 ouvintes telefonam por dia para participar dos programas ou pedir músicas. “Que lei é essa que impede você de explicar aos cidadãos que eles têm direitos e têm o dever de lutar pelos direitos que têm?”, questiona o coordenador de programação da Rádio Heliópolis, Gerônimo Barbosa, o Gerô. Todas as vezes em que foi ameaçada de fechamento pela Polícia Federal, recebeu ampla solidariedade, inclusive de autoridades. Dois anos atrás, quando outra denúncia de interferência motivou nova tentativa de fechamento pela Anatel, o governo federal prometeu dar uma solução, a exemplo do que havia sido feito com a Rádio Favela de Belo Horizonte, transformada em rádio educativa. A solução não veio e no dia 20 de julho deste ano, às 10h45, a PF e a Anatel lacraram o transmissor da Rádio Heliópolis.

No mesmo instante do fechamento, uma corrente de apoios se formou. De boca em boca, o assunto chegou aos ouvidos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Mexeram com a mãe das rádios comunitárias”. A ordem superior foi para resolver o assunto “imediatamente”. No dia seguinte, o gerente geral de administração de planos e autorização de uso de radiofreqüência da Anatel, Yapir Marotta, telefonou para Gerô e apresentou a solução. A emissora deveria se vincular a uma universidade com o objetivo de executar um “Serviço Especial para Fins Científicos ou Experimentais”. Ficou acertado que o convênio seria com a Universidade Metodista, de São Bernardo do Campo (SP). Mas até o início de outubro a papelada ainda não havia ficado pronta. Para efeitos formais, ela irá testar a possibilidade de utilização do canal 199 (freqüência 87,7 MHz), que, em princípio, deveria funcionar como proteção para o canal 198 (freqüência 87,5 MHz), que a Anatel liberou para os municípios da Grande São Paulo em abril, depois de uma luta de oito anos.

Entidades que defendem a democratização dos meios de comunicação estão divididas a respeito da solução. Umas consideram que foi uma vitória decorrente da pressão feita sobre a Anatel e o governo federal pelo movimento “Cadê Canal Pra Capital?”. Outras, escaldadas por um histórico de embromação, suspeitam que a solução visa colocar as rádios comunitárias para fora do dial. O superintendente de comunicação de massa da Anatel, Ara Minassian, assegura que os testes feitos até agora são confiáveis. Embora o número da freqüência não apareça no dial de muitos aparelhos, o sinal é captado perfeitamente por qualquer modelo de rádio, exceto um que é próprio dos veículos Mercedes, que não são bem o público-alvo das rádios comunitárias. “Ninguém tem de trocar de rádio para pegar uma radio comunitária FM no 198. A maioria dos modelos portáteis não tem todas as freqüências no dial. O ouvinte se habitua a localizar”, sustenta.

A solução técnica da Anatel estava oficializada desde abril de 2004, mas o Ministério das Comunicações vinha protelando a abertura dos processos de autorização para funcionamento das rádios. A pressão tinha começado cinco anos antes, quando a Oboré, uma empresa de comunicação popular parceira da Rádio Heliópolis, e a Escola de Comunicações e Artes da USP organizaram o debate “Direito Constitucional e Radiodifusão Comunitária”. A partir de um parecer do juiz federal Paulo Fernandes Silveira, que já tinha concedido mais de cem liminares para o funcionamento de rádios comunitárias na região de Uberaba, no Triângulo Mineiro, foi iniciada uma luta para mudar o foco da artilharia na direção do poder público municipal por meio do movimento “Cadê Canal para a Capital?”. Silveira considera o município um ente pleno da federação, com direito de conceder autorizações para o funcionamento de rádios comunitárias.

O movimento das rádios comunitárias de São Paulo teve sua grande vitória com a aprovação da Lei 14.013, que estabelece a autonomia da prefeitura da capital para disciplinar a exploração do serviço de radiodifusão comunitária no território paulistano. Embora esteja sendo contestada judicialmente pela Abert, a Lei Municipal foi determinante para pressionar o governo federal a liberar o canal das comunitárias em São Paulo. O Minicom informou aos representantes do movimento “Cadê Canal para a Capital?” que os primeiros avisos de habilitação para ocupação dos canais comunitários da Grande São Paulo devem ser publicados ainda este ano. Falta apenas selecionar, entre as 308 entidades que estão pleiteando um canal, aquelas que realmente prestam serviços comunitários. A Rádio Heliópolis certamente estará na lista para, finalmente, legalizar o seu pedacinho de ar.

Fonte: Revista ARede

 
 
 
   
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