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  Até Quando?
Eduardo Galeano
  08/08/2006

Caná, este é o nome do lugar onde Jesus transformou a água em vinho para celebrar o amor humano, e Caná é o nome do lugar onde o ódio humano despedaça mais de 30 crianças durante um longo bombardeio. A guerra continua como se nada tivesse acontecido. Há quem diga que foi um erro. Até quando os horrores continuarão sendo chamados de erros?

Esta guerra, esta carnificina de civis, foi desatada a partir do seqüestro de um soldado. Até quando a captura de um soldado israelense poderá justificar o seqüestro da soberania palestina? Até quando a captura de dois soldados israelenses poderá justificar o seqüestro do Líbano inteiro?

Durante séculos, a caça aos judeus foi o esporte preferido dos europeus. Em Auschwitz, isso desembocou num antigo rio de espantos que havia atravessado a Europa inteira. Até quando os palestinos e os demais árabes continuarão pagando por crimes que não cometeram?

O Hezbollah não existia quando Israel arrasou o Líbano em suas invasões anteriores. Até quando continuaremos acreditando no conto do agressor agredido, que pratica o terrorismo porque tem direito a se defender do terrorismo? Iraque, Afeganistão, Palestina, Líbano... Até quando se poderá exterminar países impunemente?

As torturas de Abu Ghraib, que têm despertado um certo mal-estar universal, não têm nada de novo para nós latino-americanos. Nossos militares aprenderam estas técnicas de interrogatório na Escola das Américas, que agora perdeu o nome, mas não as manhas. Até quando continuaremos aceitando que a tortura continue se legitimando, como fez a Suprema Corte de Israel, em nome da legítima defesa da pátria?

Israel tem desatendido a 46 recomendações da Assembléia Geral e de outras instâncias das Nações Unidas. Até quando o governo israelense continuará exercendo o privilégio de ser surdo?

As Nações Unidas recomendam, mas não decidem. Quando decidem, a Casa Branca impede que decidam, porque tem direito de veto. No Conselho de Segurança, a Casa Branca tem vetado 40 resoluções que condenam Israel. Até quando as Nações Unidas continuarão atuando como se fossem um outro nome dos Estados Unidos?

Desde que os palestinos foram desalojados de suas casas e despojados de suas terras, correu muito sangue. Até quando continuará correndo muito sangue para que a força justifique o que o direito nega?

A história se repete, dia após dia, e um israelense morre por cada 10 árabes que morrem. Até quando a vida de cada israelense continuará valendo 10 vezes mais?

Em proporção à população, os 50.000 civis, mulheres e crianças em sua maioria, mortos no Iraque, eqüivalem a 800.000 estadunidenses. Até quando continuaremos aceitando, como se fosse um hábito, a matança de iraquianos numa guerra cega que esqueceu seus pretextos? Até quando continuará sendo normal que os vivos e os mortos sejam de primeira, segunda, terceira e quarta categoria?

O Irã está desenvolvendo energia nuclear. Até quando continuaremos acreditando que isso basta para provar que um país é um perigo para a humanidade? A chamada comunidade internacional não fica minimamente angustiada pelo fato de Israel ter 250 bombas atômicas, ainda que este seja um país que vive à beira de um ataque de nervos. Quem manuseia o perigosimetro universal? Terá sido o Irã o país que jogou as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki?

Na era da globalização, o direito de pressão pode mais do que o direito de expressão. Para justificar a ocupação ilegal das terras palestinas, a guerra se chama paz. Os israelenses são patriotas e os palestinos terroristas, e os terroristas semeiam o alarme universal. Até quando os meios de comunicação continuarão sendo medos de comunicação?

A matança atual, que não é a primeira e nem será, receio, a última, ocorre em silêncio? O mudo está mudo? Até quando as vozes de indignação continuarão soando em sinos de madeira?

Estes bombardeios matam crianças: mais de um terço das vítimas e às vezes muito mais, como em Caná. Aqueles que se atrevem a denunciar isso são acusados de anti-semitismo. Até quando, nós, críticos do terrorismo de Estado, continuaremos sendo anti-semitas? Até quando aceitaremos esta extorsão? Os judeus horrorizados pelo que se faz em nome deles são anti-semitas? São anti-semitas os árabes, tão semitas quanto os judeus? Acaso não há vozes árabes que defendem a pátria palestina e repudiam o manicômio fundamentalista?

Os terroristas se parecem entre si: os terroristas de Estado, respeitáveis homens de governo, e os terroristas privados, que são loucos soltos ou loucos organizados desde os tempos da guerra fria contra o totalitarismo comunista. E todos atuam em nome de Deus, chame-se ele Deus, Alá ou Jeová. Até quando continuaremos ignorando que todos os terrorismos desprezam a vida humana e que todos se alimentam mutuamente? Não é evidente que nesta guerra entre Israel e o Hezbollah são civis, libaneses, palestinos, israelenses, os que entram com os mortos? Não é evidente que as guerras do Afeganistão e do Iraque e as invasões de Gaza e do Líbano são incubadoras de ódio, que fabricam fanáticos em série?

Somos a única espécie anima especializada no extermínio mútuo. Destinamos 2 bilhões e meio de dólares por dia aos gastos militares. A miséria e a guerra são filhas do mesmo pai: como alguns deuses cruéis, comem os vivos e os mortos. Até quando continuaremos aceitando que este mundo apaixonado pela morte é nosso único mundo possível?

Fonte: La Jornada, 02/08/2006.

 
 
 
   
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