Se este anexo tiver imagens, elas não serão exibidas.  Baixar o anexo original
Page 1
1
Contornos da política de radiodifusão comunitária no Brasil
GOMES, Ana Luisa Zaniboni. Na boca do rádio: o radialista e as políticas públicas. São Paulo :
Hucitec / OBORÉ, 2007, v.2.000. p. 37-53.
Duas Leis, dois Decretos, duas Normas Complementares, onze Portarias e
duas Medidas Provisórias publicadas em caráter oficial entre fevereiro de 1998 e
outubro de 2005 constituem os instrumentos legais que, em conformidade aos
princípios constitucionais, historicizam e regulam os serviços de radiodifusão de
baixa potência no Brasil (BRASIL, 2006).
A radiodifusão comunitária foi oficializada como um serviço público regular a
partir da Lei 9.612, assinada pelo então Presidente da República Fernando
Henrique Cardoso e por seu Ministro das Comunicações Sergio Motta, em 19 de
fevereiro de 1998. Dez anos, portanto, de promulgada a Constituição que assegurou
ao povo brasileiro, no bojo da redemocratização do país, seu direito à livre
manifestação de idéias e opiniões “sob qualquer forma, processo ou veículo, sem
qualquer restrição” (BRASIL, 1988) e reconheceu a importância da participação da
sociedade civil na formulação, execução, acompanhamento e fiscalização das
políticas públicas.
De forma sintética e de acordo com os desdobramentos políticos e técnicos
que desde 98 se incorporaram ao arcabouço legal, a legislação em vigor define a
rádio comunitária como um serviço de radiodifusão sonoro que opera em freqüência
modulada, baixa potência e alcance restrito. Sua área de cobertura é limitada ao raio
de no máximo mil metros contados a partir de sua antena transmissora. Seu
equipamento transmissor, obrigatoriamente certificado pela ANATEL, opera com
potência máxima de saída de 25 watts. Trata-se, em tese, de uma pequena estação
de rádio.

Page 2
2
Na perspectiva legal do poder concedente, uma rádio comunitária tem como
objetivo proporcionar informação, cultura, entretenimento e lazer a pequenas
comunidades:
Uma rádio comunitária deve divulgar a cultura, o convívio social e os
eventos locais; noticiar os acontecimentos comunitários e de
utilidade pública; promover atividades educacionais e outras para a
melhoria das condições de vida da população [...]. A programação
diária de uma rádio comunitária deve conter informação, lazer,
manifestações culturais, artísticas, folclóricas. Deve estimular tudo
aquilo que possa contribuir para o desenvolvimento da comunidade,
sem discriminação de raça, religião, sexo, convicções político-
partidárias e condições sociais. Deve respeitar sempre os valores
éticos e sociais da pessoa e da família e dar oportunidade à
manifestação das diferentes opiniões sobre o mesmo assunto
(BRASIL, 2006).
A lei também define que a execução do serviço de radiodifusão comunitária
está restrita às fundações e associações comunitárias sem fins lucrativos,
legalmente constituídas e registradas, com sede na comunidade em que pretendem
prestar o serviço. Seus dirigentes devem ser brasileiros natos ou naturalizados há
mais de dez anos, maiores de 18 anos, residentes e domiciliados na comunidade.
A entidade candidata-se a uma autorização para rádio comunitária através de
encaminhamento de formulário de demonstração de interesse ao Ministério das
Comunicações, em Brasília. Se houver canal (freqüência) disponível para a
localidade de interesse, o Ministério das Comunicações publica o Aviso de
Habilitação no Diário Oficial da União. Com isso, a solicitante deve entregar, dentro
do prazo estabelecido no Aviso, os documentos exigidos. A autorização é
concedida por dez anos, podendo ser renovada por igual período. Por lei, cada
entidade pode receber apenas uma autorização para execução do serviço e está
proibida de transferi-la a terceiros.

Page 3
3
Tanto em página eletrônica quanto em publicações oficiais disponíveis sobre
o assunto o Ministério das Comunicações adverte, de forma destacada, que uma
rádio comunitária
não pode ter fins lucrativos nem vínculos de qualquer tipo com
partidos políticos ou instituições religiosas [...] a instalação e
funcionamento de estação de rádio, sem a devida autorização, é
crime Federal, punido com prisão dos responsáveis e apreensão
dos equipamentos. Essa penalidade é aplicada não somente ao
proprietário da estação clandestina, como também a todos aqueles
que, direta ou indiretamente, estejam ligados a essa atividade ilegal
(instaladores,
vendedores e fabricantes de equipamentos,
anunciantes etc.) (BRASIL, 2006).
Números oficiais
Segundo dados oficialmente apresentados em outubro de 2006 pela
Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações
por intermédio da Coordenadora do Serviço de Radiodifusão Comunitária,
Alexandra Luciana Costa, 11.605 pedidos de autorização de funcionamento de
rádios comunitárias tinham sido analisados pelo Departamento de Outorga entre
fevereiro de 1998 e outubro de 2006. Do total de pedidos, 2.611 já estavam
autorizados e 4.842 arquivados em função de inviabilidade técnica para publicação
de aviso de habilitação. Ainda estavam em análise 4.152 processos devido a
pendências técnicas ou jurídicas na documentação apresentada pela entidade ao
poder concedente
1
.
Importante destacar que, de 2003 a 2006, foram 8.100 novos requerimentos
apresentados ao Departamento de Outorgas. Muitas entidades aguardavam
resposta oficial do Ministério há mais de cinco anos. Outras tantas, menos pacientes,
1
Os dados foram apresentados em reunião realizada na OBORÉ, Escritório Paulista da AMARC, dia
10 de outubro de 2006, para discutir com o Ministério das Comunicações uma solução para a
situação da cidade de São Paulo, à época ainda sem aviso de habilitação para o serviço de
radiodifusão comunitária.

Page 4
4
colocaram suas rádios em funcionamento, correndo o risco de visitas da ANATEL e
da Polícia Federal. São essas duas organizações que, juntas, protagonizaram
operações de apreensão de equipamentos, fechamento de emissoras e, não raro,
prisão dos responsáveis. Tais situações ainda têm ocorrido no país inteiro e são
cada vez mais freqüentes.
Figura 01 - Localização das 2.611 emissoras comunitárias oficializadas pelo Ministério das
Comunicações até outubro de 2006.
São Paulo, um caso à parte
Os dados oficiais apresentados na reunião com o Ministério das
Comunicações, em outubro de 2006, corroboraram que nenhuma das emissoras
contempladas com licença definitiva de funcionamento tinham sede em São Paulo. A
cidade permanecia fora do mapa das autorizações de outorga (BRASIL, 2006
)
, junto
com mais nove municípios vizinhos. O próprio Ministério das Comunicações

Page 5
5
reconheceu que 335 entidades da Capital de São Paulo com documentação
apresentada em Brasília ainda estavam sem parecer técnico.
Desde abril de 2004 o canal 198 está disponibilizado para a cidade de São
Paulo e também para 35 cidades da região metropolitana (BRASIL, 2006).
Pressionada pela campanha Cadê Canal pra Capital?, reuniões, audiências públicas
e seminários, a ANATEL localizou naquele mesmo ano um espaço no dial para as
pequenas emissoras de São Paulo, ampliando a faixa de radiodifusão em FM que,
ao invés de começar na freqüência 87,8, começa agora em 87,4. Entretanto, o
Ministério das Comunicações não havia autorizado a publicação do aviso de
habilitação para a região.
De acordo com o Secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica do
Ministério da época, Joanilson Ferreira, o motivo da demora era um impasse técnico
dada a inconveniência de outorga de emissoras comunitárias em regiões de elevada
conurbação enquanto prevalecerem os critérios estabelecidos na Norma
Complementar 1/2004, referindo-se à distância mínima de quatro quilômetros entre
as estações executantes para assegurar uma relação de proteção, ou seja, evitar
interferência de uma emissora na outra no momento transmissão. Tal justificativa
estava respaldada em estudo elaborado pela própria ANATEL e Fundação Centro
de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD): uma política de
outorgas que considere apenas a preservação da distância mínima entre estações
poderia conduzir à prestação do serviço com qualidade aceitável em uma área de
cobertura inferior ao estabelecido na regulamentação vigente, que corresponde a um
círculo de um quilômetro de raio.
Em termos simplificados: mesmo cumprindo a distância mínima de 4 km para
as antenas (estabelecida na Norma Complementar 01/2004), poderiam surgir na

Page 6
6
região metropolitana de São Paulo agrupamentos muito densos de emissoras
comunitárias de tal forma que haveria uma interferência entre elas que reduziria o
contorno efetivo de proteção de 1 km para 510 metros, não atendendo ao texto da
própria Norma. Além das inevitáveis interferências entre as estações, apenas 7% da
área da comunidade seria potencialmente coberta pela emissora. Para o CPqD, os
instrumentos legais atuais não davam conta de resolver a situação do município. A
sugestão da ANATEL para o impasse foi que na região metropolitana de São Paulo
fosse provisoriamente considerada uma distância de 6km entre as estações
comunitárias.
Configurou-se, então, um novo cenário. A legislação até agora em vigor é
incapaz de viabilizar a existência de rádios comunitárias em São Paulo. O parecer
técnico exarado pela ANATEL e pelo CPqD reforça a necessidade de um
planejamento, de âmbito regional, para evitar a concentração de antenas
transmissoras e a redução do contorno de serviço causado pela interferência
combinada das estações, conforme demonstra o estudo referendado pelo Ministério
das Comunicações. Reforça, inclusive, a tese de que é preciso uma solução local
para desatar tecnicamente este nó, uma vez que a distância de 6 km entre as
emissoras abre espaço para apenas 37 rádios comunitárias na cidade.
Diante de tantos impasses, tornou-se indispensável um trabalho de
aproximação entre o Departamento de Outorga de Serviços da Secretaria de
Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações e as
entidades representativas paulistanas. A reunião de outubro de 2006 marcou o início
dessa aproximação. A participação do Ministério em reuniões sistemáticas, com a
preocupação de definir, em conjunto com entidades da sociedade civil, critérios
democráticos para o aviso de habilitação para São Paulo, foi um passo decisivo para

Page 7
7
elaboração de mecanismos transparentes para a autorização do serviço de
radiodifusão comunitária, bem como para determinação de quantas rádios
comunitárias poderão operar na cidade e onde poderão funcionar.
Depois de sete Mesas de Trabalho que materializaram o esforço conjunto de
diversas instituições, entidades, rádios comunitárias, poder legislativo local e
executivo federal para discutir o serviço de radiodifusão comunitária no município de
São Paulo, foram finalmente pactuados alguns critérios de participação que
passaram a ser considerados na redação do futuro Aviso de Habilitação para o
serviço de radiodifusão comunitária no município: universalidade, eqüidade,
representatividade e responsabilidade técnica. A demanda pela autorização para o
serviço de radiodifusão deveria ser sobreposta ao mapa das subprefeituras do
município. Após o recebimento da documentação, o mapa com as coordenadas das
rádios interessadas em obter a concessão deveria ser disponibilizado no site no
Ministério das Comunicações para que todos os cidadãos pudessem acompanhar o
seu trâmite.
O Aviso de Habilitação foi finalmente publicado no dia 7 de dezembro de
2006, no Diário Oficial da União, e estipulou prazo até 19 de janeiro de 2007 para
que as entidades da cidade de São Paulo interessadas na autorização para o
serviço de radiodifusão comunitária apresentassem sua documentação junto ao
Ministério.
Foram então organizados três grandes mutirões de apoio jurídico e técnico
para oferecer suporte no preparo da extensa lista de documentos exigidos no Aviso
de Habilitação. Os mutirões materializaram o esforço conjunto de advogados,
estudantes, engenheiros e técnicos, e de entidades como a Defensoria Pública de

Page 8
8
São Paulo, Escritório Modelo D. Paulo Evaristo Arns (PUC-SP), Escritório Paulista
da AMARC – Associação Mundial de Rádios Comunitárias e Cidadãs, OBORÉ e
ANOREG-SP – Associação de Notários e Registradores do Estado de São Paulo
(Associação dos Cartórios).
Durante o prazo de 45 dias estipulado no Aviso de Habilitação (prorrogado
por outros 45, de acordo com o Aviso 03/2006, encerrado em 7 de março de 2007),
os mutirões contabilizaram 64 registros de atendimento, desde esclarecimentos
sobre a elaboração e atualização do estatuto da entidade pretendente em
consonância ao novo Código Civil, ajuda no preenchimento dos formulários e apoio
técnico de um grupo de voluntários reunido pela OBORÉ / Escritório Paulista da
AMARC na determinação das coordenadas geográficas (GPS) das entidades .
O relatório preliminar do Ministério das Comunicações consolidando os 287
atendimentos ao Aviso de Habilitação da cidade de São Paulo foi exarado em 8 de
maio de 2007: 154 processos foram arquivados por deficiência de dados ou
inadequação aos termos do Aviso e 133 processos estavam aptos para a nova fase
de análise. No dia 28 de maio, uma nova análise técnica foi divulgada registrando
que 110 entidades concorriam, oficialmente, a uma autorização ou licença de
funcionamento.
Por um Plano Diretor de Radiodifusão
O Plano Diretor do Município de São Paulo, que vigorava desde 1971, foi
remodelado em 2002 (lei 13.430 de 13.09.2002) e previu revisões a cada dois anos
(SÃO PAULO, 2006). Em 2004, através da lei 13.885, estabeleceram-se normas
complementares ao PDE e instituídos os Planos Regionais Estratégicos das

Page 9
9
Subprefeituras, dispondo sobre o uso e ocupação do solo no município (Lei de
Zoneamento). No artigo 266 da Lei de Zoneamento havia a determinação para que o
Executivo desenvolvesse o Plano Diretor de Radiodifusão Comunitária e o
incorporasse à revisão prevista para 2006. Tal revisão só agora começa a ser
discutida pelos edis e a sociedade civil.
Este importante documento define e planeja o desenho futuro do município.
Pode colaborar, em muito, com o Ministério das Comunicações no desafio de
avançar na busca de mecanismos adequados de distribuição territorial das rádios
comunitárias na cidade, inclusive de acordo com os princípios da legislação federal:
distribuir as pequenas emissoras de forma organizada, a partir dos dados
geográficos locais, como relevo e demografia, sem o risco de interferências de
umas sobre as outras.
O artigo 266 prevê ainda a participação da sociedade no
desenvolvimento das regras para a instalação das rádios, desenvolvimento de
sistema público de controle de cadastros georreferenciados e formas de participação
do Executivo Municipal na produção de conteúdos. Entretanto, a Câmara de
Vereadores não trabalhou sobre a revisão do PDE prevista para 2006. Todas essas
possibilidades de entrosamento ainda estão por concretizar:
O Executivo deverá desenvolver o Plano Diretor de Radiodifusão
Comunitária, a ser incorporado ao PDE quando de sua revisão,
abrangendo no mínimo os seguintes pontos:
I. definição das regras a serem observadas para instalação de
rádios comunitárias, de acordo com a legislação própria e com base
em processo participativo;
II. desenvolvimento de sistema público de controle e cadastro
georreferenciado;
III. formas de participação do Executivo na produção de conteúdo a
ser disponibilizado para veiculação.
Parágrafo único. As diretrizes para a elaboração do Plano Diretor de
Radiodifusão Comunitária são:
I. democratização do acesso aos meios de transmissão, inclusive no
que diz respeito ao espectro de freqüências, cf a legislação federal;
II. garantia da viabilidade técnica do meio, de forma a evitar
interferências de radiofreqüência;

Page 10
10
III. garantia da participação da sociedade civil e de suas entidades
representativas nos processos de elaboração, decisão e gestão;
IV. garantia da pluralidade de pensamento e de representação, com
espaço na programação para temas ligados a etnia, gênero,
diversidade de orientação sexual e deficiência física e mental;
V. priorização das rádios relacionadas a programas e ações de
saúde, educação e cultura
(
SÃO PAULO, 2006).
A discussão sobre o poder local
Importante recuperar que a radiodifusão em geral e o serviço de
radiodifusão comunitária estão sob proteção do Estado Brasileiro, conforme prevê o
artigo 22 da Constituição. Em tese, somente a Câmara Federal teria competência
para propor alterações na legislação, no tocante às concessões. Contudo, baseado
nos princípios do Federalismo, o município de São Paulo aprovou uma lei que
garante a instalação de rádios comunitárias em seu território.
Sancionada em 23 de junho de 2005 pelo então Prefeito José Serra, a Lei
14.013 propõe a descentralização da esfera federal para a municipal das decisões
sobre a exploração dos serviços de radiodifusão comunitária e instrumentaliza o
poder local a tornar mais ágil a análise dos processos, a emissão das autorizações
e, principalmente, a fiscalização desses serviços. Com a descentralização dos
processos, é possível potencializar a fiscalização sobre quem são, realmente, os
beneficiários das autorizações.
Outro ponto importante da lei municipal é o de favorecer a auto-sustentação
das pequenas emissoras ao permitir patrocínio, sob a forma de apoio cultural ou
inserção publicitária, desde que esses recursos sejam, obrigatoriamente, revertidos
para a própria emissora e administrados pela associação responsável. Nas regras
federais, uma rádio comunitária não pode veicular publicidade. Só é permitido apoio

Page 11
11
cultural (citação do nome da entidade apoiadora) desde que restrito aos limites de
seu raio de alcance de um quilômetro. Isso praticamente inviabiliza a existência e
sustentabilidade da emissora pois, mesmo contando com mão-de-obra voluntária, a
rádio precisa de recursos para compra, manutenção e atualização de equipamentos,
além de outras pequenas despesas como contas de luz e telefone. Pior: dá margem
à ação do narcotráfico, das facções criminais, pregações e cultos religiosos de
finalidade meramente financeira e dos políticos ricos de direita, reconhecidamente os
que têm dinheiro na mão para investir e financiar pessoas, projetos e entidades
localizadas em regiões em que têm interesses estratégicos.
Este marco legal fez de São Paulo, em tese, a primeira grande cidade
brasileira a ter o direito de autorizar o funcionamento de rádios comunitárias. Apesar
de grande, a conquista foi parcial: o executivo municipal não definiu regras
pormenorizadas de operacionalização e a ABERT apresentou recurso contra a lei
através do Ministério Público. Todos os desdobramentos ainda tramitam na esfera
jurídica.
Fruto de uma luta de seis anos que reuniu, em sua fase inicial, as principais
lideranças locais do movimento das rádios comunitárias, músicos, órgãos públicos
da saúde, educação, cultura, universidades e entidades simpáticas à causa da
democratização dos meios de comunicação, a construção de uma lei de
municipalização para as rádios comunitárias amparou-se em uma ampla frente
política, interinstitucional e interdisciplinar que começou a ganhar corpo no fim dos
anos 90, quando da realização do workshop Direito Constitucional e Radiodifusão
Comunitária.
Organizado pela Escola de Comunicações e Artes da USP e pela OBORÉ, o
evento reuniu, no dia 14 de outubro de 1999, na Sala da Congregação da Escola,

Page 12
12
representantes de rádios comunitárias de São Paulo, do Legislativo, Judiciário,
Ministério Público, da Aeronáutica, engenheiros, jornalistas e professores de
Comunicação. O ponto alto do encontro foi a palestra do advogado Paulo Fernando
Silveira, juiz federal especialista em Direito da Radiodifusão Comunitária e autor de
uma obra de referência no assunto (Silveira, 2001).
Conhecido como um incisivo defensor da democratização dos meios de
comunicação, o juiz já tinha concedido, à época, mais de cem liminares para o
funcionamento de rádios comunitárias na região de Uberaba, no Triângulo Mineiro.
Silveira é defensor do argumento de que é o município que deve conceder a
autorização para o funcionamento das rádios comunitárias apoiando-se nos
princípios do Federalismo. Esses princípios asseguram força política autônoma aos
estados e municípios para decidirem sobre questões regionais e locais,
respectivamente. Definem também que apenas os assuntos de interesse nacional ou
que envolvam mais de um Estado é que são discutidos no âmbito da União.
Diz o juiz federal que a partir do momento em que o município recobra sua
parcela de poder político indevidamente usurpada pela União, resgata sua auto-
governabilidade política, como quer a Constituição Federal, proporcionando aos
seus munícipes o poder de decidirem sobre os interesse locais.
[...] contudo, remanesce uma pretensão que reputo maior e mais
nobre: libertar o povo brasileiro da ignorância, romper com a
dominação elitista do setor das comunicações e, em decorrência,
democratizar o país, retirando nossas sofridas maiorias do domínio
político de minorias oligárquicas, que impedem o crescimento
nacional e negam a justiça a milhares de irmãos, ao arrostarem sem
rebuço os princípios constitucionais da liberdade de expressão e da
igualdade, este último o pilar que sustenta o regime democrático de
um povo livre (SILVEIRA, 2001, p.2).

Page 13
13
Direito à vez, direito à voz
A questão das rádios comunitárias pode ser analisada em vários terrenos. Do
ponto de vista financeiro, há resistência das grandes emissoras, representadas pela
ABERT em dar espaço à atuação das pequenas, que respondem basicamente por
informações de interesse locais, dando vez e voz às demandas concretas das suas
comunidades. Tal concorrência pode significar perda de hegemonia e de audiência
real dos grandes veículos, se somadas as várias comunidades que têm seus meios
próprios de comunicação e a eles se fidelizam.
A prática tem demonstrado que pequenas emissoras comunitárias têm
conseguido índices altos de audiência e de aceitação pelas comunidades
locais. Primeiro porque desenvolvem uma programação sintonizada com os
interesses, cultura e problemática locais. Segundo porque têm revelado
grande capacidade de inovar programas e linguagens, o que as diferenciam
das FMs tradicionais. Terceiro porque acabam revelando um grande potencial
de atrair os anunciantes locais tanto pelo preço mais baixo das inserções,
quanto pela possibilidade da alta segmentação de mercado, ou seja atinge
diretamente o público-alvo do anunciante local. Todavia, dinheiro não é tudo
que interessa, não o único motivo para a contestação às rádios comunitárias.
Elas são portadoras de um conteúdo político que amedronta os três poderes
constituídos [...] (PERUZZO, 1998b, p.7).
Outra alegação da ABERT é de que as pequenas emissoras interferem na
transmissão das grandes, e mais que isso: atrapalham a freqüência dos aviões e das
ambulâncias, significando riscos à população. Se analisado do ponto de vista
técnico, o uso de equipamentos homologados e a observância aos princípios da lei
da radiodifusão comunitária encerrariam tal impasse. Mas sabemos que o ponto
central não está apenas no questionamento financeiro, técnico ou legal. A política de
concessões praticada no Brasil, que privilegia senadores, deputados e políticos
influentes de tendências ideologicamente conservadoras, com o advento das

Page 14
14
pequenas emissoras locais teria um concorrente real: a voz da comunidade
questionando justamente essas políticas conservadoras expressas nos meios de
comunicação tradicionais.
Não é à toa que já há duas décadas o movimento que deu origem ao serviço
de radiodifusão em baixa potência tinha como bandeira de luta a democratização
dos meios de comunicação e a busca de informações alternativas às divulgadas nos
meios hegemônicos. De certa forma, isso explicaria os lobbies constantes dos
grandes conglomerados de comunicação junto ao Congresso Nacional, selando
compromissos de barrar mudanças significativas no Código Brasileiro de
Telecomunicações (de 1962 e posteriormente seus diversos decretos, portarias e
normas regulamentadoras) e Lei Geral das Telecomunicações (de 1997 e também
seus diversos decretos, portarias e normas) e abafam discussões sobre a
radiodifusão privada, pública, comunicação comunitária, TV paga, telecomunicações
e informática, controle de propriedade, propriedade intelectual e acesso à
informação.
Não é novidade que o acesso aos meios e o conteúdo das informações estão
fortemente vinculados e monopolizados pelo poder político e econômico. Os
movimentos de quebra desses monopólios, apesar das fortes resistências,
continuam atuando de forma legítima mas não necessariamente legal nas brechas
do sistema vigente. Nesse sentido, é até possível dizer que os pequenos veículos de
comunicação,
voltados para um território fisicamente delineado, continuam
alternativos, à margem, transitando na contra-mão das grandes linhas do desenho
rascunhado pela globalização.
Quanto a questão da ilegalidade desse tipo de transmissão, de fato
sob o ponto de vista jurídico é discutível, pois a lei das

Page 15
15
telecomunicações e a Carta Magna do país colidem no assunto.
Porém, podem ser consideradas como legítimas, pois têm uma
função social importante no processo de convivência e
desenvolvimento comunitário. Atendem a uma carência crescente
de comunicação em nível local, a que a legislação não soube se
adiantar. Além de muitos municípios brasileiros não disporem de
emissoras de rádio ( setenta por cento), em geral as rádios
existentes tem uma programação descolada das problemáticas
locais, eminentemente musicais e padronizadas, e em alguns casos
transmitem em rede nacional, operadas a partir dos grandes centros
urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro (PERUZZO, 1998b, p.8).
No caso das emissoras locais, a política governamental tem sido dúbia. O
mesmo governo criminaliza mas utiliza-se
desses recursos comunitários e
populares para se conectar aos movimentos sociais, como é o caso do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Ministério da Saúde, da Educação e da
Cultura, por exemplo.
[...] muito se tem a crescer em qualidade participativa na
programação e na gestão de veículos de radiodifusão comunitária.
Mesmo porque somos um povo sem tradições participativas e
culturalmente impregnado de viéses de conformismo e tendência a
transferir aos governantes a responsabilidade pela solução dos
problemas sociais. Contudo, nas duas últimas décadas a praxis dos
movimentos populares começaram a alterar esse quadro ao
possibilitarem a elaboração cultural de novos valores, muitos dos
quais podemos ver incorporados em experiências de comunicação
comunitária. A experiência da radiodifusão comunitária evidencia
uma crescente demanda pela mídia local e por programas locais nos
grandes meios massivos. São canais que possibilitam a expressão
das diferenças e ao mesmo tempo das identidades culturais das
populações locais (PERUZZO, 1998b, p.13).
É no espaço dessa contradição que mora a importância de se refletir e buscar
os embasamentos que explicam - e até justificam - a política que vem sendo
adotada pelos sucessivos governos em relação à radiodifusão comunitária.
Importante registrar que em março de 2003, início do Governo Lula, uma
grande mobilização das entidades de representação das rádios comunitárias
conseguiu com que o Ministro das Comunicações Miro Teixeira criasse um Grupo de
Trabalho com o objetivo de diagnosticar a situação e propor ações para

Page 16
16
desburocratizar o setor das autorizações. Na prática, nada avançou e a repressão às
emissoras prosseguiu de forma exponencial. Em novembro de 2004 um novo Grupo
de Trabalho, desta vez interministerial, foi criado pelo então Ministro Eunício de
Oliveira para produzir novo diagnóstico e novas propostas para disseminar
pequenas rádios por todo o Brasil. O relatório final, entregue em setembro de 2005
ao presidente Lula pelo novo ministro, Hélio Costa, não foi oficialmente divulgado
(BRASILIA, 2005). As buscas e apreensões de equipamentos pelos órgãos federais
continuaram por todo o Brasil.
Um dos casos expressivos de retenção de equipamentos foi o da rádio
Heliópolis, instalada em 1992 na capital de São Paulo e administrada pela UNAS –
União de Núcleos, Associações e Sociedades de Heliópolis e São João Clímaco.
Parceira do governo federal, estadual e municipal em diversos projetos sociais e
uma das grandes experiências brasileiras de comunicação comunitária a rádio está
instalada em uma área ainda não regularizada da zona sul da cidade que concentra
mais de 120 mil habitantes.
Na manhã do dia 20 de julho de 2006, por decisão da Justiça Federal, a
Polícia Federal e a ANATEL lacraram a rádio, após 14 anos de funcionamento
ininterrupto e apreenderam uma mesa de som, dois microfones, uma CPU, um
gerador de estéreo e um transmissor. Também foi aberto processo criminal contra
dois dirigentes da UNAS, João Miranda Neto, presidente da entidade, e Geronino
Barbosa, diretor geral da rádio.
Fruto de inúmeras articulações sociais e políticas e de fortes manifestações
de solidariedade, os principais coordenadores da ANATEL encontraram uma solução
técnica e jurídica capaz de resolver o caso: autorizar a execução do serviço especial
para fins científicos ou experimentais no canal 199, supervisionado por uma

Page 17
17
universidade ou instituição de ensino. Esta operação notadamente política vem
tramitando desde então visando resolver o impasse pontual de Heliópolis (BREVE;
DIAS; COUTO, 2006).
No momento em que a maior metrópole do país é assolada por uma onda de
violência urbana protagonizada por organizações criminais ligadas ao narcotráfico, é
reprimida uma iniciativa que, reconhecidamente, colabora no fortalecimento das
lutas populares e na organização da sociedade por meio da difusão de valores como
a solidariedade e a justiça.
Duas semanas depois do fechamento da rádio Heliópolis e imediatamente
após a adoção de solução provisória ao caso, a Polícia Federal em São Paulo,
através da Delegacia de Repressão a Crimes Fazendários, desencadeou a
Operação Sintonia com o objetivo de cumprir mais de 40 mandados judiciais de
busca e apreensão na Grande São Paulo e encerrar as atividades de diversas rádios
que operam sem a autorização da ANATEL. A operação lacrou, no dia 02 de agosto,
16 emissoras na Grande São Paulo e mais 26 no dia 18 de setembro. Dados da
ANATEL também revelam que no ano de 2007 foram lacradas 1.602 emissoras
“piratas” em todo o país.
É neste conturbado e contraditório cenário que se dá a entrada do Brasil na
nova era do rádio, a da transmissão digital.