<< voltar



David Capistrano da Costa Filho, um exemplo a ser seguido


José Ruben de Alcântara Bonfim*



De antemão, louvemos a iniciativa do professor José da Silva Guedes, secretário de Estado da Saúde e presidente do Conselho Estadual de Saúde, da professora Elza Lobo, secretária executiva deste Conselho, e das senhoras e senhores conselheiros, em homenagear David que foi, de forma muito apropriada, denominado pelo semanário Época, desta semana, um dos maiores sanitaristas do país.

É motivo de orgulho para todos nós que David tenha imprimido um significado especial à palavra sanitarista que em um dicionário de referência concebido em outro tempo, designa a "pessoa que é perita em assuntos sanitários"; o adjetivo sanitário então queria dizer "relativo à higiene", "destinado a livrar ou preservar a saúde pública ou particular de tudo quanto pode prejudicá-la, principalmente no que diz respeito a doenças endêmicas ou contagiosas".

É verdade que ainda nos ocupamos de enfermidades "endêmicas ou contagiosas" agora apresentadas sob outros novos tipos - simbolizados na síndrome de imunodeficiência adquirida - ou as enfrentamos sob formas ditas reemergentes.

Todavia David, com extraordinária competência, contribuiu para alargar o campo tradicional da saúde pública introduzindo os temas relativos às doenças crônicas degenerativas, hoje em dia em nosso meio responsáveis pela morbimortalidade mais expressiva, até então característica dos países desenvolvidos; ou seja, David foi um dos fundadores de nossa moderna saúde pública, melhor denominada saúde coletiva.

Médico sanitarista do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Alocução feita em 23 de novembro de 2000 na sessão de homenagem a David Capistrano da Costa Filho promovida pelo Conselho Estadual de Saúde de São Paulo.

Mas David não ficou apenas nisso. Infundiu, com muitos outros sanitaristas, no conceito de sanitarista, "a pessoa perita em assuntos sanitários", a poderosa idéia de que "se deve trabalhar com a ótica de atacar os problemas principais, os riscos maiores para a vida e a saúde da população, identificados pela investigação epidemiológica, pela experiência e pela pressão popular. E atacar com os meios, materiais e humanos, disponíveis, com as forças que tivermos à mão"; e que isso "não é difícil, e muito menos impossível, trabalhar assim. O único requisito indispensável é o compromisso. Compromisso com a vida e compromisso com os que sofrem". David não só somente assinalou o novo conceito de sanitarista, as novas atribuições e responsabilidades, que está à espera de dicionarização. Realizou-as em pouco mais de um quarto de século de vida profissional.

Mas David não tinha somente a límpida compreensão de uma "cultura sanitária de síntese", da necessidade de aplicação de uma efetiva Carta de Direitos - "o reconhecimento de direitos ao trabalho, à alimentação, à habitação salubre, à cultura, além dos mais amplos direitos civis e políticos" -, e da luta pelo desenvolvimento de leis complementares, na legislação ordinária, como Rudolf Virchow fez na Alemanha do século passado, como os ingleses no pós-guerra e os italianos nos anos sessenta. David salientou os aspectos políticos-culturais da construção do Sistema Único de Saúde, isto é, os aspectos políticos-culturais da municipalização. E empregava o termo político na acepção usada por Cícero, célebre orador e homem público romano: "Isto é, políticos por dizerem respeito aos interesses das cidades, enfim da coisa pública" . David não é simplesmente um sanitarista de renome internacional. Foi um exemplo para que possamos dar um significado renovado à expressão servidor público, condição que também a exerceu pelo voto popular quando foi prefeito em Santos.

E para ressaltar essa outra dimensão de David, colhi em recente edição de textos de Cícero - creio que David não chegou a conhecer - um pensamento do orador latino a respeito do político ideal, do magistrado no sistema romano, isto é, de todo e qualquer ocupante de um cargo público: "A essência de um magistrado está em comandar e prescrever ações corretas, úteis e conformes às leis, pois como as leis presidem aos magistrados, assim os magistrados ao povo, e verdadeiramente se pode dizer que um magistrado é uma lei falante, e a lei, um magistrado mudo".

A atuação multiface de David - o médico, sim porque ele exerceu a clínica que certamente ampliou sua sensibilidade política; o agitador social que honrou as tradições libertárias da humanidade; o organizador de serviços de saúde, de educação e de cultura que são reconhecidos como modelares; o difusor de idéias generosas para transformar nossa vida tornando-a mais justa - certamente exigirá um esforço de biógrafos sob um painel de sua intensa luta que começou antes do golpe militar de 1964, quando mal começava sua adolescência. Em muitos momentos expressou uma idéia recorrente, mesmo após a derrota do regime militar. Em 1978 ao apresentar esse extraordinário livro que é Medicina e Política, de Giovanni Berlinguer, um dos primeiros da coleção Saúde em Debate da qual foi um dos fundadores, disse David: "Tendemos a traduzir [a relação entre medicina e política] para saúde e democracia, porque nele não se trata de medicina, stricto sensu. Democracia porque a política que serve ao progresso sanitário - demonstra cabalmente o autor - é unicamente aquela que propugna a conquista, a defesa e a ampliação constante da democracia, hoje aspiração maior do povo".

Conquistamos a democracia formal, mas queremos algo mais profundo. As idéias e as realizações de David podem nos iluminar. Às contribuições para uma cultura sanitária de síntese de grandes sanitaristas - peço-lhes que perdoem esquecimentos - feitas por Samuel Barnsley Pessoa, Carlos Gentile de Mello, Maria Cecília Ferro Donnangelo, Mário Victor de Assis Pacheco, Ricardo Bruno Mendes Goncalves, Ricardo Laffetá Novaes, devemos juntar a contribuição especial de David Capistrano da Costa Filho.

Osvaldo Cruz diante das lides sanitárias disse que não se podia esmorecer para não desmerecer. Creio que David tinha uma compreensão um pouco mais profunda: "A paixão que nos deve possuir na nossa atividade de dirigentes municipais de saúde aparece às vezes como uma espécie de voluntarismo. Não faz mal: é mesmo preciso uma férrea vontade, pertinácia, persistência, insistência, para vencer os inúmeros obstáculos postos à nossa frente" .

David tinha uma particularíssima obediência a princípios que conduzissem ao bem-estar comum. Recordei-me, no seu falecimento, do que disse Herman Hesse : "A obediência é virtude. Toda a questão está a quem obedecer. A obstinação também é obediência. Mas todas as outras virtudes, tão estimadas e decantadas, são obediência a leis feitas pelos homens. O obstinado obedece a outra lei: ao "senso" do que lhe é próprio".

Creio que deveríamos, em homenagem a David, ter uma obstinação semelhante à dele. É muito difícil numa hora de morte consolar a família, os amigos, os companheiros de trabalho, os conhecidos e até os adversários que têm sensibilidade. Horácio, segundo Renzo Tosi , registrou a sentença - Multis ille bonnis flebilis occidit, Morreu quem é digno de ser chorado por muitos homens de bem. Nós, homens e mulheres de bem, vamos continuar a luta de David Capistrano da Costa Filho como ele continuou a luta de seu pai - simbolicamente sepultado com ele.

O ideal comunista de David poderia nos animar à construção de uma sociedade fraterna, livre das desigualdades econômicas, da violência social e da violência institucional, da corrupção, da falta de solidariedade e de amor.


*Médico sanitarista,
diretor-executivo da SOBRAVIME - Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos